sábado, 17 de dezembro de 2011

Watch out, fellow Charles!

"Estela" e a Ditadura envergonhada
Quem poderia imaginar que um embaixador americano tivesse sentimentos?

Charles foi alguém que poderia ter se encaixado neste perfil. Foi embaixador americano em terras tupiniquins durante o início do período mais recrudescente da ditadura militar brasileira. 

Não sei por que não morava em Brasília (já, há quase uma década, a Capital Federal); talvez porque em Brasília não houvesse ainda embaixada.

Se já houvesse cá uma casa tão bonita como a que Charles morava com sua amada Elvira, naquele bucólico Rio dos anos 60, é certo que não teria sido sequestrado - como foi - em setembro de 1969.

Tomou uma coronhada no coco, foi encapuzado e feito refém de militantes de esquerda radicais. De um minuto para o outro, deixava para trás uma vida de mimos e paparicos para estar num quarto úmido e sem janelas, sendo ainda vigiado, in loco e diuturnamente, pelos assim chamados “terroristas”. Charles os observava, estáticos à sua frente, encapuzados e de arma em punho, a espreitá-los nos olhos pelos furos tenebrosos em seus gorros à la Ku-klux-klan.

O embaixador era, agora, moeda de troca, e sua vida seria poupada em troca de outras quinze vidas. Se a exigência terrorista não fosse atendida em dois dias, Charles morreria. É provável que ele não soubesse dessa prerrogativa, mas não é necessário se informar sobre o que ocorre no mundo externo quando se tem a vida em patente ameaça.

Apesar do temor, o embaixador demonstrou também muita perspicácia ao traçar o perfil de seus raptores apenas pelas poucas palavras que escutara e pela aparência de suas mãos – as únicas partes do corpo à mostra.

Citou o fanatismo daquele que seria o mais jovem e aguerrido do grupo, e também a amargura e o rancor de uma das lideranças , para quem, segundo Charles, “a obstinação superara a ignorância”. E pela delicadeza da pele , ficou a imaginar que desígnios haviam feito de uma jovem de voz tão bela enveredar pelo radicalismo da luta armada. E se deixou encantar pelo idealismo de um rapaz inteligente que era o único a falar Inglês e a não usar o capuz enquanto estava à sua frente.

Mas Charles, apesar de filosoficamente sensível, não era tão bem informado sobre o país que representava, pois afirmava desconhecer as práticas de tortura estimuladas ou ministradas pelos Estados Unidos em solo latino-americano: - “Eu apenas represento os interesses do Estado”, afirmou o gringo, quando interrogado pelos “terroristas”.

Os terroristas, no entanto, chamavam Charles de “senhor” e, em momento algum enquanto ele esteve aprisionado, o agrediram fisicamente - senão a citada coronhada, motivada por um ato de desespero do próprio Charles, à hora do sequestro. Além disso, permitiram que o cativo escrevesse à Elvira, tranquilizando-a, e se preocuparam, inclusive, em lavar as camisas e os lençóis do embaixador enquanto durou seu martírio.

A ação do grupo foi bem sucedida, e três dias após o rapto, Charles estava de volta à embaixada e, alguns meses depois, aos Estados Unidos, a fim de realizar uma bateria de exames médicos.

Enquanto Charles fazia seu check-up em Washington, o grupo que o sequestrara no Brasil era desintegrado. Alguns haviam sido assassinados, outros estavam presos, e mais um bocado, sendo brutalmente torturado nos porões da vergonha militar. A estes, choque e pau-de-arara como cartão de visitas; nada de lençóis limpos ou camisa lavada. Mas Charles não sabia de nada.

Apesar da sensibilidade que teve ao descrever seus algozes, Charles não se mostrou tão arguto quanto ao destino de tanta gente, explorada, torturada e assassinada mundo afora. 


Numa coisa, porém, ele estava certo: às vezes, a obstinação supera a própria ignorância.


5 comentários:

João Carlos Assumpção disse...

Crítica construtiva. Posso? E quem disse que um embaixador norte-americano não tem sentimento? Pode ter, pode não ter. Você não está estereotipando os embaixadores norte-americanos? Há embaixadores e embaixadores, amigo Maltrapa. E na operação, direta ou indiretamente, não estavam Zé Dirceu e Gabeira, que hoje se odeiam? E que pouco a pouco foram mostrando sua cara, inclusive Gabeira, não só o Dirceu? Não tenho ídolos tampouco me levo a sério. Ser humano é ser humano e como tal falho seja em que for. A questão é que há falhas e falhas. Erros e erros. Aí está a diferença entre uns e outros, Maltrapa. Ou o caminho não é esse? Estou falando besteira? Pode ser, pode ser... Abração, Janca

O Maltrapa disse...

Amigo Janca,

Acabo de chegar em casa após uma proveitosa jornada em campo.

Confesso que tomei umas (duas, três, quatro) e outras, razão pela qual não me encontro apto a comentar seu muito interessante apontamento - o que farei, com prazer, na próxima manhã.

Por ora, deixo-lhe estas poucas letras como paliativo, porquanto seja notório o seu apego às madrugadas, sendo quase certo que irá lê-lo antes mesmo que eu acorde.

Abração,

O Maltrapa

O Maltrapa disse...

Janca, agora posso compreender o ponto de sua reflexão, e achei-a interessante por ser uma interpretação distinta da que eu quis transmitir.

Em dado momento, fiquei encantado pela sensibilidade do embaixador; o que não me impediu de terminar o filme com aquele embrulho no estômago e muitas lágrimas nos olhos.

Então, motivado pela indignação, aproveitei-me das próprias declarações dele - "represento o Estado norte-americano"- para explicitar a diferença de comportamentos entre grupos igualmente radicais. Confesso que não foi minha intenção transparecer simpatia ao Zé Dirceu (ou a qualquer outra pessoa, senão - e paradoxalmente - ao próprio embaixador), mas evidenciar o disparate do tratamento dispensado a estes e aqueles prisioneiros.

De resto, reafirmo, em público, que nada tenho contra a classe diplomática... Ou a favor! Hahaha!


Abração pra você, Janca!

O Maltrapa

João Carlos Assumpção disse...

Graaande Maltrapa. Tinha visto sua primeira resposta _às vezes é ótimo tomar uma, duas, três..._, agora vi a segunda. É interessante como um segundo olhar sobre as coisas muda nosso ponto de vista. E um terceiro, um quarto, um quinto. Reli seu post e agora gostei ainda mais do que antes. Achei mais interessante e minha "crítica" meio improcedente _rs. Como você não tenho nada contra a classe dos diplomatas. Mas não tenho muita coisa a favor, não. Abração, Maltrapa, Janca

O Maltrapa disse...

E aí, Janca, beleza pura sem mistura?

Meu primeiro impulso foi responder ao seu comentário inicial rebatendo suas "acusações", pois quis justamente evitar cair naquele velho dualismo da esquerda reacionária de então. Ainda bem que acabei encontrando as palavras certas para melhor apresentar meu ponto de vista.

A perspicácia com que Charles "leu" aquelas pessoas não combina com sua ignorância em relação a uma prática tão deplorável e covarde como a tortura.

Pelo visto, amanhã vai ter bate-papo sobre o Santos, lá no seu quintal...

Abração,

O Maltrapa