sábado, 12 de junho de 2021

As Valas Abertas da América Latina

    A bola está nos pés de Leandro, rente à linha lateral, já no campo de ataque. O Peixe Frito entorta o marcador e corta para o meio, conduzindo o esférico com sua elegância característica. Dá um passe diagonal rasteiro para um companheiro que vem em repentina aceleração, despontando na zona do agrião, na boca da meia-lua; é Zico. O timing perfeito dos craques é sabotado pelo piso do Defensores del Chaco – aquilo não pode ser chamado de gramado –, e a pelota alcança o Galo com pequeno atraso, de passagem, em meio a um repique matreiro, fazendo com que este a ajeite com azeite, num toque de craque, com o tornozelo, para arrematá-la com raiva, sem deixá-la tocar o solo, implodindo a meta guarany. Era um domingo de sol, tanto lá como cá, e o gol fez eclodir abraços entre tios, primos, pais, avós, agregados e empregados que assistiam à partida. Nada mais acontecia na casa; nada era mais importante que um jogo da seleção. E para mim, de apenas nove anos, nada era mais importante do que um gol de Zico.
 
    Corria o ano de 1985. A ditadura estava enterrada, o Galinho estava de volta ao Flamengo e a Blitz desbundava geral. Nosso êxtase era o êxtase das massas; a vibração era coletiva, e o povo brasileiro estava em evidência.
 
    A vitória sobre a turma das guaranias, no palco deles, se manteve como a única desde então, e só foi replicada na última terça-feira, uma semana antes de completar 36 anos. A quase efeméride, no entanto, teve menor repercussão que a vitória, em si, ou que a consolidação da liderança nas Eliminatórias, ou que os 100% de aproveitamento. O grande emblema da noite foi o enterro definitivo daquilo que a seleção brasileira um dia simbolizou, ocorrido com a divulgação de um manifesto, logo após a quebra do incômodo tabu, também por 2x0, e também com direito a gol do camisa 10. As semelhanças param por aí; basta ver o gol de um e a patuscada penal do outro, salva pelo VAR. 

    “Quando nasce um brasileiro, nasce um torcedor”, inicia o texto. Belo mote. Parabéns ao publicitário da turma. Sugiro patentear o slogan, ou logo a CBF se apropria. Fora isso, pergunto: e quando morre um brasileiro, o que acontece? Morre um torcedor e pronto? Lamenta-se e tchau? E se morrerem mais de um? Tipo... Uns 800 mil (chegaremos lá, não temam), o que é que rola? Lamenta-se 800 mil vezes? Ou (pior) lamenta-se uma vez a cada 100 mil valas abertas, como faz a autoridade máxima do País? O que vocês, como “grupo coeso”, pensam sobre as tais “questões humanitárias” (haja eufemismo!) abordadas de modo tão en passant, no referido manifesto? (By the way, já aprendeu a falar o Francês, menino Ney?) O que lhes parece levantar o caneco na mesma noite em que ultrapassarmos o meio milhão de cadáveres indignamente sepultados? Seria uma história bem constrangedora de se contar aos netos, temos de admitir. Mais: e se o grupo de “pensamentos distintos” (aparentemente sem vestígios progressistas ou humanistas), que está sempre atento à mídia e ligado nas redes sociais (e na CPI do Genocídio, espera-se), descobrir que esse meio milhão de tragédias familiares foi resultado de uma estratégia lunática posta em prática pelo mau militar, mau pai, mau marido, mau parlamentar, mau gestor, mau cidadão e mau cristão que hoje enverga a alcunha de comandante em chefe desta triste Nação? O que teria o grupo canarinho a dizer? Que em nenhum momento quiseram “tornar essa discussão política”? É isso mesmo? Too late, guys... 

    O devotado ambiente familiar descrito no início dessa crônica parece empoeirado, e não porque a seleção tenha deixado de nos dar alegrias esportivas, já que de lá para cá nos tornarmos hegemônicos no continente e no mundo (neste caso, ao menos em número de Copas). Também não tem relação com a estirpe da classe dirigente, pois Havelanges, Chedids e Guimarães não parecem destoar fenotipicamente de Teixeiras, Marins, del Neros e Caboclos da vida, com especialização gradativa no banditismo, que tornou-se transnacional. A sensação de que algo está fora da ordem, no entanto, se revela, não pela supressão das reuniões familiares para torcer pela seleça, que segue sendo uma tradição (ainda que minguante), senão pela ausência do sentimento que promovia esse tipo de reunião, embasado no amor espontâneo e arrebatador por um time que, sim, representava a Nação (a pátria em chuteiras, ipsis litteris!), e não na filosofia individualista de mandrakes encabeçada por cabeças-de-vento como Neymar Júnior.
 
    Sendo justo, é preciso frisar que nosso craque pop star é apenas fruto de uma semeadura feita muitas estações atrás, quando se conjecturaram a destruição do Maracanã, a venda dos amistosos a grupos estrangeiros, as tramóias com a NIKE e todo um case modernoso que, por fim, alijou o torcedor brasileiro do cotidiano do plantel nacional, numa transmutação que fez da Seleção Brasileira a Seleção da CBF. Talvez nossos amotinados nutelados ainda não saibam que a CBF seja uma instituição privada atolada na merda até o topo, o que torna demeritória, aos recém-nascidos, a integração compulsória à torcida por essa empresa, como sugerido no manifesto. Devemos dar aos pequenos a oportunidade do aprendizado e do estudo da História, para que um dia possam tomar seu partido, não acham? 

    Não por acaso, era exatamente isso que o Brasil inteiro esperava de vocês: que tomassem partido. Não tomaram. Peidaram na farofa. Amarelaram. E quem não toma partido, hoje, claramente se coloca ao lado do partido errado. Logo vocês, ídolos economicamente bem sucedidos, que se espelham tanto no american way of life, babando ovo e pagando pau para as celebridades norte-americanas, mas que agora sentem na pele a falta que lhes fez e ainda faz o estudo e o mínimo de consciência política. Majoritariamente bem formados e informados, os ídolos de lá entendem muito bem (aliás, reivindicam) o papel que lhes cabe na sociedade, agindo em prol dela e se posicionando POLITICAMENTE. Mas aí já seria pedir demais a vocês, né? “Já não basta ter saído da miséria, mudado pra Europa, ter uma super máquina na garagem, passar o rodo na mulherada, e o cara ainda quer eu me posicione sobre política? Não fode!...”. Sim, pode doer um pouco no começo, mas logo vocês descobririam que ser uma personalidade do esporte nada tem a ver com selfies de chapéu estiloso e óculos coloridos. 

    O primeiro gol, no jogo de 85, foi de Casagrande; uma das raras figuras do futebol brasileiro a se posicionar contra a ditadura, ainda como atleta, o que não o impediu de ter sucesso nos campos, tendo disputado Copa do Mundo, sendo ídolo da Fiel e campeão da Copa dos Campeões da Europa (atual Champions), pelo Porto. Casão representava (e representa) a contestação, a rebeldia e o inconformismo do jovem suburbano que gostava de rock e se ligava na política. Teve ninguém menos que o Doutor Sócrates como tutor – aquele que condicionou sua permanência no Brasil à aprovação da Emenda Dante de Oliveira (que possivelmente vocês não tenham a mais vaga noção do que se trata), e que apareceu com uma faixa na cabeça na qual se lia DEMOCRACIA (e não JESUS) na estréia brasileira na Copa de 86. 

    Diferentemente de quatro décadas atrás, optei por não assistir ao jogo da última terça. Acredito que milhões de brasileiros, que em outras épocas não cometeriam tal sacrilégio, fizeram o mesmo. Decerto não se sentem mais representados pela outrora amarelinha (desta feita, trajaram uma camisa azul degradê fashion da NIKE; perfeita para nossos metrossexuais apolitizados), enquanto os que se sentem, estão por aí, sem máscara, combatendo a ciência, apavorados por inimigos imaginários, desrespeitando as instituições e apoiando a ditadura (e não por acaso, vestindo a camisa da CBF, o novo símbolo do atraso nacional). 

    Enfim, caros comandados do camarada Tite (ou seriam apenas os ‘meninos da CBF’?), vocês tiveram uma oportunidade de ouro nas mãos, potencialmente mais impactante e revolucionária que a conquista do hexa, porque voltada para o benefício social imediato e longevo da população, e a partir da qual resgatariam a confiança e a admiração de todos nós com uma atitude honrada; bastaria ter fechado com o certo. Os 7x1 virariam nada ante a magnitude desse gesto solidário e consciente, todos os males seriam relevados, enfim!... Mas não: optaram por manifestar que estavam putinhos, que a CONMEBOL é boba, e que vão jogar mesmo assim, enquanto a oligofrenia governamental nos condena à morte. De modo que, aludindo ao desfecho do patético manifesto, está claro que a seleção a qual atendem não é mais a brasileira, e vocês já não simbolizam nada para o povo brasileiro, que não a covardia, a insensibilidade e a alienação.

sábado, 28 de novembro de 2020

O Fantástico Encontro Entre Zé Bigorna e Diego Maradona

 

Zé Biga: pinta de craque aos dois anos.
Hoje meu filho começou a gostar de futebol.

    Não deixa de ser, da minha parte, uma conquista pessoal, empenhado que estou nessa missão desde o seu nascimento, há cinco anos, quando estendi o manto rubro-negro no quarto da maternidade. A partir de então, todas as minhas bolas de estimação passaram a ser dele, e também as muitas outras que comprei pelo caminho – mais bolas que eu amealhara em toda a minha carreira.

    Aos quatro meses de vida, pela primeira vez ele viu nosso time se sagrar campeão, assistindo comigo à final da Copa São Paulo de Juniores. Antes mesmo de saber ficar de pé, conduzia a pelota sobre o tapete colorido de poliuretano enquanto se deixava pendurar pelos braços. Certa vez, minha unha grande do dedão machucou seu calcanhar, e ele me olhou com uma cara feia da porra. Passei a cortar a unha.

    E quando ele aprendeu a gritar “gol”, me soou tão agradável como quando aprendeu a falar “papai”. Comprei camisa do Flamengo e jogo de botão, além de construir um campinho de futebol no quintal de casa, com as próprias mãos, e batizá-lo em sua homenagem: Campinho do Zé Bigorna; tudo por ocasião do seu segundo aniversário, de temática futebolística, claro. Da festa, sobraram as traves de golzinho que passaram a ornamentar o campinho onde ele aperfeiçoava seus arremates, enquanto eu esperava pacientemente que ele crescesse o suficiente para que pudéssemos disputar uma partida à vera.

    O nascimento da irmã atravessou o caminho entre ele e o gol, pois eu já não dispunha do tempo necessário e não podia mais lhe dedicar atenção exclusiva. Quando íamos a campo, com a presença da pequena, a brincadeira se tornava caótica e sem a fluidez que ele desejava, causando mais contratempo que aperfeiçoamento. Eu falava de Zico e o trazia ao colo para assistir os jogos do Mengão, aos quais ele passou a rechaçar, com ciúmes dela, que se aninhava em meu peito para acompanhar cada concerto do time de Jorge Jesus. E nem mesmo um ano épico como o de 2019 foi suficiente para trazê-lo de volta à baila, com os dois gols de Gabigol contra o River tendo recebido mais atenção da caçula, de apenas um ano e meio, que do próprio guri. O campinho caía no esquecimento, e até as traves do golzinho eram corroídas pelo tempo, escoradas no muro cinza como esqueletos insepultos.

    Até que neste vinte e cinco de novembro, algo de espantoso aconteceu.

    Pela manhã, fazendo a marcação ilustrativa da baliza de futebol society que lhe seria presenteada pelo avô, lancei mão de dois cabos de vassoura fincados no gramado para que ele tivesse a noção do que está por vir, e posicionei a bola para que ele me experimentasse no gol. Sei que muitos dos pais que ora me lêem estão me julgando, “mas como esse pangó não pensou nisso antes?”. É, talvez eu tenha dado mole ao me amparar nas traves do golzinho, embora isso já não importasse diante das expressões de contentamento esculpidas na cara dele, revelando uma satisfação infantil despudorada.

    Após ter as primeiras cobranças defendidas, marcou três gols em sequência, o que o levou ao êxtase, dada sua natureza ultra-competitiva e o desafio que se impunha. Afinal, não era mais a monotonia do adversário molenga que eu interpretava jogando golzinho, e sim o papai dando tudo de si, propiciando inéditas injeções de adrenalina na corrente sanguínea, além de uma sensação desconhecida de êxito no semi-zerado córtex cerebral do Zé Bigorna. Então, após meter uma bola que bateu no pé da trave e entrou (apesar do meu pulo performático), vi sua boca se arqueando e os olhos se esbugalhando, empolgado como jamais havia estado. Nunca estivera tão entretido com o jogo, tão entregue ao deleite ludopédico. A irmã se esbaldava na piscina, concedendo a ele a liberdade de dar quantos chutes quisesse, e assim foi até a hora do almoço: “De tarde a gente joga mais, né, papai?”, assegurou-se, saltitante, com a bola sob o braço (e não largada ao sol, como era seu costume).

    À noite, emocionado pela morte de Maradona, mostrei a ele um videozinho de Don Diego fazendo aquecimento antes de um jogo pelo Napoli, com malabarismos virtuosos, como se estivesse se enroscando a um macaquinho de estimação, em assombrosa exibição de intimidade e sintonia com a bola e as leis da física. Ele se esticou em meu colo, aproximando o rosto da tela:

    - Quem é ele? – interessou-se, seduzido pelo novo mundo que se abria.

    - Maradona – respondi, sentindo o peito apertar.

    - Quero jogar igual a ele quando eu crescer – manifestou, impressionado com a sequência de embaixadinhas alternadas entre uma coxa e outra empilhadas pelo gênio atarracado.

    - Tem que treinar muito, meu lindo...

Ele ficou assistindo o restinho do vídeo, compenetrado, após o qual se virou e, com olhos de deslumbramento fixados nos meus, ratificou o desejo:

- Papai, eu quero jogar igual a ele quando eu crescer!

Cúmplice em sua descoberta de um herói de carne e osso, respirei sua alegria misturada à dor da realidade, e lutei para manter o sorriso. Abracei-o com carinho, contendo o choro, hesitante, sem coragem de lhe dizer que seu primeiro ídolo acabara de morrer.







photos by joão sassi

arte by marcya reis

quinta-feira, 23 de julho de 2020

Deus no Céu e Jesus na Terra




    Quando se anunciou que Jorge Jesus seria o técnico do Mengão, foi o mesmo que nada; jamais ouvira falar no nome. Entretanto, mesmo desconhecido, nada parecia pior que o time do Abelão, o que levou descrentes e ateus, como eu, a aceitar Jesus no coração.

    O gajo, com ares soturnos de verdugo pinçado das masmorras de um conto medieval, chegou contestando a docilidade com que o adepto rubro-negro se deixava entorpecer pelos ‘deuses de 81’, entregando-se passivamente aos júbilos da Era Zico, ao passo que os caminhos rumo ao Olimpo se esfacelavam no esquecimento. Com um agravante: o Flamengo se contentava com uma única Liberta e um único Mundial, com a magnética passando pano e cantando que há quarenta anos botara o Liverpool na roda! Quarenta anos, galera!

    Se estacionados em andaimes rebaixados desde o baile no time dos Beatles, subestimávamos clubes tal qual o paraguaio Olímpia (campeão mundial e tri da Liberta), é forçoso admitir que os tubarões do pedaço esfregassem as mãos nos confrontos de mata-mata; “Uêba! El Mengón és papa-frita!”, deleitavam-se, bem como as piabas continentais como o América (MEX) ou o Defensor (URU). Éramos do nível de um Argentino Jrs., de uma LDU, um Colo-colo, um Vasco da Gama(!!!) em termos de conquistas extraterritoriais, ó, pá.

    Isso até a chegada do portuga, com sua cara de manga chupada e olhar de conquistador ultramarino. “Tá mal, Arão!”, já no primeiro treino. “Esse é dos nossos”, pensou geral. Não era. Os “nossos” ficaram todos pelo caminho, à exceção de um ou dois. Muito pouco. “Lutem para que nestas paredes estejam estampados vossos rostos na próxima época”, bradou o Odair José lusitano, chocando o Ninho do Urubu e questionando a devoção improdutiva ao passado, quebrando o encantamento letárgico que se abatera sobre nós desde os 3x0 no Santos, em 83, e, principalmente, extraindo o jogador do flamengo de sua eterna zona de conforto ao defenestrar o raciocínio terceiro-mundista de que “aqui é Mengão, o time do Zico” resolveria alguma coisa – quando, em verdade, o manto sagrado há muito deixara de se impor aos adversários como uma bastilha inexpugnável, senão o contrário; a mítica 10 do Galinho, símbolo máximo do apogeu rubro-negro, agonizava, vilipendiada por Mugnis, Minhocas, Carlos Eduardos e que tais.

    E vieram os empolgantes 6x1 sobre o Goiás: meu irmãããããããão, há quanto tempo que tu não via o Flamengo fazer tanto gol, sem tirar o pé, e com tanta qualidade (alguém falou em 81?)? Quem viu, sabe; foi como nascer de novo! Era aquele o ‘time de índios’ que o Abelão rechaçava? Então me dá meu apito que já tô dando entrada na minha cidadania pindoramense! Após a peleja, os mais atentos haveriam de ter notado que nosso Roberto Carlos ibérico era o melhor cacique que a tribo da Gávea poderia ter. Um sonho inesperado, como um beijo do nada surgido de um fado sofrido, para em seguida nos apaixonarmos por aquele fiapo de homem algo bronco, mas terno, que até I LOVE YOU em libras sabia dizer! Olêêêêê-olê-olê-olêêê, mister, mister!!!

    E vieram batalhas épicas, sendo desta feita o conquistador português um aliado, e subitamente não éramos mais nós a temer as invasões bárbaras vexatoriamente freqüentes no solo sagrado do Maracanã, mas muitas das outrora temidas etnias é que agora batiam em retirada, atordoadas, engolindo cuspes e palavras, no desespero de salvarem escalpos, filhos e vergonhas, à medida que um sentimento de confiança extrema ganhava materialidade dentro de cada indivíduo de vermelho e preto - e já não era mais o caso de ‘se’ venceríamos, mas de ‘por quanto’ venceríamos.

    Nós, com menos de 60 anos, muito ouvíramos sobre um tal futebol total – será que era disso que falavam? Porque eu nunca tinha visto coisa igual. Nem tamanha simbiose entre jogadores, comissão técnica e torcida – a diretoria, embora eficiente, deixo de fora desse caldo saboroso porque é escrota (Garotos do Ninho?) e neofascista (Bozo?). E assim, taças, troféus, títulos e recordes se amontoaram durante o tempo exato em que nossa fatigada Mãe-Terra deu uma volta completa em torno ao Astro-Rei; mais canecos que derrotas. Assombroso.

    Torcer pelo Flamengo, como disse o Juca Kfouri, passou a ser sinônimo de torcer pelo bom futebol. Línguas deletérias, críticas e detratoras silenciaram, sobrando uns poucos recalcados a não reconhecerem que o futebol brasileiro havia mudado, ou, como brilhantemente definiu o renomado e célebre pensador afro-americano contemporâneo Bruno Henrique, havia atingido “ôto patamá”. Rivais passaram a celebrar como um título empates arrancados ao esquadrão flamenguista. Técnicos adversários caíam como uva (essa é uma homenagem ao Queiroz) e cânones eram reduzidos a pó enquanto vacas sagradas se viam condenadas a pastar em público. A cidade, o país e o continente foram conquistados, mas o comandante ambicionava o mundo. Falhou na primeira tentativa, mas o roteiro já estava pronto para 2020: campeão da Copa do Brasil, barreira dos 100 pontos quebrada no Brasileirão, tri da Liberta no Maraca e vitória sobre os Reds no Mundial, again, com novo baile. Aí o Jesus seria contratado pelo, vá lá, Barcelona, o Gallardo o substituiria e todo mundo viveria feliz para sempre.

    De repente, como no sonho pornográfico que sempre acaba quando a bola está quicando na frente do gol, o torcedor acordou. E também ele, que nunca havia sido tão feliz na vida; “estava no Paraíso e tive de decidir”. Covid, solidão, família, saudades da terrinha seriam suas justas razões e, quaisquer que tenham sido, haveriam de ser sumariamente aceitas e respeitadas. Seu choro nos braços de Rafinha e Éverton Ribeiro, na despedida, é revelador; ele sabe que jamais encontrará torcida como a do Flamengo, ou atmosfera como a do Maracanã. Aliás, ele logo descobrirá que, por lá, “mister” é protocolo, enquanto no Brasil se tornara marca registrada. Obrigado, Mister.

sexta-feira, 8 de novembro de 2019

O Voo do Sabiá-Laranjeira


Tu não faz como o passarinho que fez um ninho e avoou, voou, voou, voou, voou...
                                                 
    De quando em vez, um passarinho novo despenca de algum ninho feito nas palmeiras ou nos coqueiros do nosso jardim. Ele tem de ter sorte para o encontrarmos antes dos muitos gatos que habitam o local. Então cuidamos e o entregamos ao serviço florestal, que assume a responsabilidade pela sobrevida do animal. Durante a última poda, no início da estiagem, quase pisoteei um recém-nascido, de quem, inadvertidamente, acabara de destruir o lar. O pouco tempo que ele ficou no chão foi suficiente para atrair dezenas de formigas que abusavam de seu fino tecido epitelial. Foi miraculosamente salvo; das formigas, da pisada, dos oito gatos e da cadela Rabisco. Há outros casos.
                                                                                       
    Há alguns dias, enquanto eu escrevia, pios desesperados cortaram a noite, vindos do fundo do quintal. Quando me levantei, já estavam mais próximos e mais estridentes e, de súbito, ecoavam alto pelo salão de casa. Era um passarinho adulto, e estava claro; não caíra de ninho algum, mas fora caçado, e agora se debatia na boca do Tomilho, um dos oito gatos da casa. Os demais vinham atrás, interessadíssimos em retalhar o aflito prisioneiro. Minha mulher surgiu nervosa à porta da sala: - Ele pegou um passarinho! Ele pegou um passarinho! - Avancei abruptamente sobre o Tomilho, que deu meia volta em direção à mesma janela pelo qual entrara. Seria o fim do passarinho, não fosse um grito meu que assustou o predador, fazendo-o abandonar a presa antes de saltar para a fuga.

    Era um sabiá-laranjeira, e me olhava furioso. Não me reconhecendo como seu salvador, bicava meus dedos enquanto a todo custo buscava se desvencilhar. Fui até a frente de casa para libertá-lo, mas não foi possível; a ave já não voava, mas se debatia. Analisei suas condições gerais e notei uma das garras imóvel, e as duas asas ensanguentadas na dobradura superior. Tomilho arrebentou com ele. 

    Quando criança, matava calangos com bodoque, sem nenhum dó. E até a caçar passarinho com espingarda de chumbinho eu me arvorei, em nome de minha ancestralidade sertaneja. Horas sob o sol inclemente do sertão baiano, rastejando no solo árido, como o bando de Lampião, e sequer me aproximar de um eu consegui! Não é como nos filmes e desenhos; na vida real, camarão não marca touca, e quando você pensa em tomar ar para a próxima rastejada, o passarinho voa. É humilhante. Ele sequer nos dá a chance de errar. Voltei com mais chumbinhos do que levara no bolso, pois achei uma caixinha cheia quase até a metade. Sorte minha: hoje tenho um carma a menos. De todo modo, quem me perdoa por matar os calangos não estenderia o perdão se as vítimas fossem os passarinhos. Hipócritas!

    Fato é que eu olhava para aquele sabiá, que agora me encarava a fundo, imóvel, e faria de tudo para que ele se salvasse do ignominioso ataque sofrido. Eu não costumava ser assim, preocupado com os bichos, mas aprendi a sê-lo por conta da natureza de minha companheira. Eu jamais ligaria para secretarias ambientais, polícias florestais, IBAMAs e que tais – eis a diferença entre pensar-se solidário e ser solidário; em ter ou não empatia pelos demais seres-vivos. Mas era noite de sexta-feira, e mesmo com toda consciência cristã planetária de Irmã Dulce, jamais conseguiríamos remetê-lo ao escrutínio de especialistas durante o fim-de-semana. Por ora, éramos nós os mantenedores de sua vida.

    O bicho foi alojado numa gaiola de gatos, e lá passou a noite, em jejum. Ao acordar, me senti angustiado e fui vê-lo, ansioso. Quando o encontrei, tombado de lado, temi pelo pior... Mas não era nada; estava vivo! Até aceitou a aguinha que lhe dei, embora tenha recusado banana e morango. Já não se debatia, e aceitava o calor de minhas mãos. 

    Aproveitei o reconhecimento e lhe fiz longos carinhos na barriguinha alaranjada, e também na cabeça, que ele inclinava em sinal de aceitação. E a bicadas nos dedos agora se assemelhavam a suaves beijinhos de sabiá-laranjeira. Olhei nos olhinhos pretos dele e falei, “você vai ficar bem, passarinho”. E ele fechou os olhinhos, parecendo querer sorrir. Depois disso, até comeu um pouquinho de banana. E durante todo o sábado, a todo o momento, ia visitá-lo na tentativa de lhe oferecer água, frutas e carinho. Mais tarde, troquei os guardanapos sujos de sua gaiola e me despedi: - Aguente firme, passarinho. Só mais um dia!

    Na manhã seguinte, levantei-me da cama pensando nele. Sua presença agora me agradava, e eu queria muito vê-lo. Foi a primeira ação do dia. Estava tombado, como na manhã anterior. Então o peguei com carinho e fiquei encarando aqueles olhinhos por um bom tempo, até me dar conta que ele estava morto... As garras estavam endurecidas, mas a maior parte do corpo ainda não. Seu pescoço pendia de um lado para o outro, conforme eu o balançava, enquanto eu tentava identificar nisso algum movimento voluntário. “Poderia estar ainda vivo”. Toquei seu peitoral em busca de um coração saltitante, mas não havia nenhum sinal de vida. Senti uma dor no peito e também um pouco de culpa.

    Coloquei-o de volta na gaiola e fui até o quintal. Não queria que minha mulher e meus filhos o vissem assim. Quando as crianças acordaram, perguntaram por ele. Não pude mentir: 

   - Quando cheguei, ele já tinha voado, meus lindos...      



imagem: joão sassi

domingo, 27 de outubro de 2019

Torcedor do Flamengo: A Felicidade Existe?

Galera reunida após longo e tenebroso inverno.

    
    Foi como o amor: não se sabe muito bem como se deu ao certo, embora se bem saiba agora que muito certo se deu. As mais belas projeções não seriam capazes de predizer o que sente um adepto rubro-negro no atual estágio da temporada; tão ou mais feliz que um adolescente defronte o espelho se arrumando para ir passar uns dias enfurnado na casa da namorada cujos pais pegaram o último avião para o Nepal – sentiram a intensidade da emoção?

    Se o Mourinho fosse o portuga escolhido, haveria festa e a magnética se daria por satisfeita em ganhar o Brasileirão do Parmêra, na rodada derradeira, por um ponto, e chegar à final da Liberta, ainda que sem favoritismo, tendo ganhado muitas partidas por 1x0, sem encantar. Caso fosse El Cholo Simeone, idem. Com o Guardiola ou o Klopp (meu sonho de consumo), as expectativas cresceriam quanto aos placares e quanto ao ‘jogo bonito’, embora sem a projeção de um time tão aniquilador e encantador (afinal, o Fla não é o Barça ou o Liverpool). Mas quando se anunciou Jorgito Jesus Crist no comando, no que teriam pensado os torcedores do Flamengo? Eu mesmo pensei pitufas, senão um ‘Glória a Deux; melhor que o Abelão ele deve ser!’, pois não tinha a menor idéia de quem era ou do que ele poderia fazer pelo Mengão. Cheguei mesmo a suspeitar que pudesse ser uma barca furada, como foram as naus portuguesas que por estas paragens abarcaram em tempos recentes.

    Mas Jesus veio e, em parcos quatro meses (o que são quatro meses, galera?), transformou a rala e salobra água rubro-negra em denso e inebriante vinho do Porto, doutrinando jogadores, multiplicando gols, recordes e vitórias, convertendo jornalistas e santificando antigos pecadores aos olhos de devotos torcedores. Sabíamos que tínhamos potencial para produzir algo de qualidade, muito embora fosse imperioso admitir que nem mesmo a hiperbólica percepção de um Nelson Rodrigues colocaria o Flamengo nos píncaros do ludopédio continental em que ora se encontra.

    Há quanto tempo você, torcedor de qualquer clube, não tem a escalação de seu time na ponta da língua? Vou além; qual a escalação de seu time quando do último título conquistado? Qual foi a última vez que seu time ‘fez história’ ou ‘marcou época’? Admitamos: a maioria nem sabe o que é isso, pois conta-se nos dedos de uma mão as esquadras que atingiram esse patamar nos últimos 150 anos de futebol jogado em solo tupiniquim. Só Santos e o São Paulo chegaram lá, além de nós.

    Entenda-se ‘chegar lá’ por dominar a cidade, o país, o continente e o mundo, colocando na roda os campeões da Champions, na final do Interclubes (atual Mundial de Clubes), como fizeram Pelé com o Benfica e Telê Santana com o Barça e o Milan. O Flamengo de Zico completa essa tríade; fomos os fodões do Bairro do Peixoto... 38 anos atrás! De lá para cá, sequer uma final continental voltamos a disputar, ao contrário dos dois paulistas, que voltaram e conquistaram novamente a Liberta, mesmo sem esquadrões foras-de-série como os de outrora. Isso nos coloca como um clube mediano no imaginário do torcedor, mundo afora. Quando não, totalmente insignificante – apesar do Zico!

    ‘Descobri’ isso num taller de periodismo entre jornalistas latino-americanos, em Cuba, em 2001 - portanto duas décadas após o baile em Tóquio. Ostentando o Manto Sagrado pelo salão, percebi que não causava qualquer sensação. Um equatoriano até sabia quem tinha sido o ‘Grande Zico’, mas não o Flamengo. Foi quando caiu a ficha de que meu Mengão fuderosão tricampeão (o Pet havia marcado o gol de falta naquela semana) não tinha qualquer representatividade ou reconhecimento no continente americano. Ou você, querido flamenguista, reconheceria o Argentinos Juniors como potência futebolística? Por que não? Os caras também foram campeões da Liberta na primeira participação deles (1985) e produziram um gênio da raça (Maradona), enquanto nós fizemos o mesmo em 1981 e revelamos o Zico. Sacaram? Somos um Argentinos Juniors da vida; ninguém bota fé, fora os próprios torcedores, os iludidos assumidos. Tudo bem que ganhamos umas copinhas do Brasil lá e cá, e outros tantos brasileirões aqui e acolá, mas e daí? Quem liga? Pior: chegando a algumas decisões como azarão (1992 e 2009)! São conquistas gostosas, mas pontuais; aliás, foras da curva (e nossa curva tende à mediocridade).

    Jorge Jesus está mudando isso. Hoje o nome do Flamengo corre pelos sete mares do Planeta. Ganhando a Libertadores e, sim, o Mundial, na negra do Liverpool, teremos assegurada nossa volta ao Olimpo, o que não estaria garantido somente pelas conquistas, senão pela forma encantadora como joga nosso time.

    O flamenguista, sem perceber, está finalmente se divorciando do paradigma de 81, ano do futebol-total, como quem deixa finalmente de pensar num antigo romance, seja por obra do tempo, seja pela aparição de um novo amor. Hoje, o flamenguista é aquele sujeito feliz e apaixonado, tal qual o adolescente do início do texto, mas não somente por estar próximo à consagração total, ou por ter sua paixão plenamente correspondida, senão por saber que ela, a paixão, pulsa em mais de quarenta milhões de corações, além de outros milhares, recém-convertidos, que têm se deixado encantar pela apoteose do Mais Querido. Como nos ensinou o jovem libertário estadunidense Cristopher McCandless - inspiração para o célebre livro ‘Na Natureza Selvagem’, de Jon Krakauer -: “a felicidade só existe quando é compartilhada”.

    Oh, meu Mengão, eu gosto de você; quero cantar ao mundo inteiro a alegria de ser rubro-negro...

Texto originalmente publicado no blog ludopédico BOROGODÓ FUTEBOL CLUBE




segunda-feira, 26 de março de 2018

Festinha na Creche

O que acontece na festinha da creche fica na festinha da creche.


   - Papai, a Aline tá na casa dela? – pergunta o guri de pouco mais de dois anos.

   - Não, ela foi pra escolinha também. Outra escolinha.

      Benedito está ao volante, irritado com a alta velocidade de alguns motoristas que vem em sentido contrário. A estrada vicinal por onde trafegam é de terra e cascalho, e é estreita. Nos primeiros dias, cumprimentavam-se uns aos outros. Com o tempo, os bons modos foram esquecidos e ninguém se constrange mais em ser deseducado, mesmo que se encontrem na creche com ar de aquele não sou eu. Mas Benedito não quer transparecer preocupação enquanto dialoga com Inácio, ocupante da cadeirinha instalada no banco de trás; prefere desfrutar o bom-humor do filho.

   - Papai, põe o menino brasileiro no rádio?... – pede ele.
   
   - Não dá, meu lindo. Já acabou. Saímos atrasados... Você não deveria ter ficado fazendo tanto dengo com mamãe na cama, né? O hino brasileiro toca às oito horas; só amanhã, agora...      
                                                  
    Inácio aperta os olhos contra o sol.

   - Cadê a cortininha pro sol não passar em mim, papai?...

   – Tá lavando, mas o sol já vai embora: olhe ali, logo adiante a estradinha fica sombreada, vê? – aponta Benedito, enquanto Inácio o ignora e acha na mão, esquecida, uma banda de pão-francês torrado com pouca manteiga. Dá uma mordiscada.

    Costumava comer toda e pedir mais, no que agora lhe parecia mais divertido despertar inveja nos coleguinhas com sua iguaria babada. O tiro, no entanto, saiu pela culatra depois que umas menininhas gulosas puxaram a camisa do ‘Tio Dito’ dizendo “também quelo”. Ele então se viu na obrigação de levar uma banda de reserva, embrulhada no bolso, e dar às crianças como se desse aos pombos da praça, aos pedacinhos, transformando a partilha num grande bafafá na porta da sala. Com cada vez mais pessoinhas curiosas e pidonas à volta do Tio Dito, este passou a levar um pão inteiro, cooptando até os mais tímidos e birrentos da classe. A professora não gosta desse fuzuê porque todos se dispersam, estragando seu planejamento. Ela espera que Benedito se toque; ele se toca, mas não se importa. Haroldo, ajudante da professora, também não, e se diverte vendo Benedito entreter os pirralhos. Haroldo ainda é estagiário.

   - Papai, põe fon-fon no rádio?

    Benedito alcança um cd no porta-luvas; a música inicial é In the Mood.

   – É o Glen Mila, papai? – pergunta Inácio, já com a resposta no olhar. O pai olha pelo retrovisor o sorriso maroto. Inácio sabe que quando acerta, o pai o felicita dizendo “êta, garoto batuta!” que ele adora ouvir.

   - Sim, é o Glenn Miller; Glenn Miller e sua orquestra.

   - ...e minha orquestra, né, papai?

   - É, sua orquestra... – diz o pai, levando o braço direito para trás do banco e massageando carinhosamente os pés do filho.

    Um motorista de óculos escuros ignora o espaço cedido gentilmente e passa rápido, sem agradecer. Benedito se incomoda em estar incomodado numa manhã tão bonita e fresca, princípio de Outono. Olha novamente e vê o filho vidrado no som: Inácio balança a cabeça acompanhando a investida dos saxofones, completamente envolvido pelo naipe de metais orquestrado por Glenn. Na segunda metade da música, acompanha os trombones às gargalhadas, fazendo fon-fon em resposta à provocação aguda dos trompetes. Quando entra Moonlight Serenade baixando a bola, o pequeno aceita a mudança de rumo e relaxa.

    Benedito passa em primeira marcha por um trecho mais acidentado. Inácio, agora pensativo, tenta se segurar com o sacolejo.

   - Eu gosto da Aline, papai. Vou guardar o pãozinho pra dar pra ela – decide o garoto, e olha ao redor procurando o guardanapo que jogou por ali.

   - Ela é legal, mas não precisa guardar seu pão; a Aline já comeu o dela – diz Benedito. – Aliás, ela te convidou para brincar lá hoje à tarde; vamos?

   - Não...

   - Ué?... Não?!.. Por quê?

   - Não, papai, porque eu vou trazer a Aline pra minha escolinha! – diz, satisfeitíssimo com o plano.

  - Pra sua escolinha?... Certo, mas tem que ser num dia de celebração – sugere o pai, deixando um ponto de interrogação na testa da criança. – Tem de ser numa comemoração... Num dia de festinha! – explicou.

   - É mesmo... Boa idéia, né, papai?... – responde o menino, refreando a felicidade momentaneamente infinita. Benedito prossegue:

   - Não pode ser em dia de aula. Hoje, por exemplo, você tem aula de música; você gosta da aula de música, né?

   - Não.

   - Não!?... Mas você adorava!... E da aula de circo, você gosta?

   - Não.

   - Ué, de que aula você gosta?

   Inácio procura o pai no retrovisor e emenda:

  - Aula de festinha, papai!
 



Nota: essa crônica foi concluída em 25 de março, em homenagem à memória da minha avó materna, D. Moema e à minha irmã Amanda, aniversariantes do dia; às duas, minha lembrança, meu carinho e meu amor.

terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

Valdeliano Faz Frete

Valdeliano e seu caminho existencial: um feixe luz.

A franja sobre os óculos de aros grossos estacionados no meio do nariz, os dentes avantajados e o forte sotaque do interior mineiro conferiam a Valdeliano simpatia no jeito e comicidade na aparência. Dois dedos atrofiados na mão direita faziam a audiência se perguntar se escolhera a melhor atividade para sobreviver. A audiência é perversa. Valdeliano não teve muita escolha na vida.

Quando foi morar no antigo acampamento da Telebrasília, não havia pavimentação e tudo era precário. A lama subia na calça quando chovia e a poeira entalava na garganta quando não. Ali se estabeleceu após o segundo casamento, ocasião em que, além da mulher, perdeu o dinheiro que sobrara do primeiro, restando somente alguns caraminguás que guardara no colchão.

Quinquagenário, sem alternativa, empenhou-os numa camioneta de quarta-mão, fazendo do frete seu ganha-pão - a ‘Mulinha’ (porque cambaleante, rangenta e vagarosa) dava conta de pequenas mudanças.

Numa dessas madrugadas frias de maio ou junho, tão logo os cachorros do vizinho latiram para o primeiro infeliz que cruzou o beco, Valdeliano despertou. Vendo o breu, fingiu que não e tratou de colocar o travesseiro sobre o ouvido para pegar o sono pelo rabo. Não deu; a bexiga cheia não deixou. Alcançou os óculos sob o travesseiro e se pôs sentado. Agasalhou-se com a própria coberta e seguiu para a casinha, fora do barraco. Chovia fino. Era o resquício antes da estiagem no Cerrado. Pronunciou o queixo e bafejou aquele vaporzinho no ar... “Que friozin bão do carái!”, emendou, bocejando e espiando o céu acinzentado, ainda escuro. Acabou esbarrando num balde, fazendo-o tilintar pela pinguela; a cachorrada não perdoou. Deu sua mijada e, já sem sono, resignou-se em abandonar a coberta, agasalhar-se e ir à cozinha fazer o que comer.

Atarraxou no bocal a lâmpada que pendia no ar e ligou o radinho pendurado à estante de tábuas e tijolos, ao lado do fogareiro. Encheu o bule, colocando-o sobre a chama azulada de gás, e fatiou dois pães dormidos, enquanto escutava aquelas conversas de rádio AM. Meteu-os num forninho elétrico (que concertara após achá-lo num entulho próximo) e encheu de pó o coador; esperou o bule apitar e depois derramou a água fervida, precipitando um vapor cheiroso de café que valeu por um beijo de mãe, e Valdeliano se sentiu bem.

Em seguida, tirou do velho frigobar algo envolvido num pano de prato. Desembrulhou e cheirou com carinho; era queijo mineiro, “dos mió”! Conseguia com o vizinho dos cachorros - conterrâneo seu, que trazia aos montes e revendia na Esplanada dos Ministérios –, por isso Valdeliano não dava queixa dos latidos: preferia acordar nas madrugadas a ficar sem o “quejin”.  Satisfeito, cortou um naco e guardou o resto.

De um pote de metal, pegou manteiga e passou em cada rodela fumegante de pão tostado, empilhando-as no prato, junto ao queijo. Desenroscou a tampa de um frasco de vidro de onde tirou um bom punhado de açúcar para pôr no copo, já com café quente até mais da metade.

Comia tranquilamente, achando bom o barulhinho da torrada mastigada, e esquentava o corpo com a bebida quente. “Como um quejin pode sê tão branquin?”, filosofava, dentro da cabeça, envolvido numa atmosfera de abstração e regozijo. Súbito, o prato estava vazio, e pela frente o mundo real: transportar um tampo de vidro de quase três metros!

Foi uma manhã terrível, mas o serviço foi feito. Com doses cavalares de dor, aflição e esgotamento físico, Valdeliano venceu os três lances de escada em forma de caracol do bloco residencial, na Asa Norte, antes de deitar o pesadíssimo fardo na Mulinha, intacto. O que só foi possível com a solidariedade do zelador, do Seu Afrânio (o dono da mesa) e de um pintor prestativo. Arfando, mas agradecido, Seu Afrânio deu vinte pilas ao zelador e outras vinte ao pintor.

Quando se preparavam para sair, o carro de Seu Afrânio rateou. Valdeliano desceu da Mulinha com uma caixa de ferramentas à mão. Ficou quinze minutos escondido atrás do capô dizendo, “liga!”, “acelera!”, “tá bão...”, etc., e o carro funcionou bem.

– Meu irmão era mecânico lá em Minas! – gritou, montando na Mulinha e se picando para o local de entrega (que ficava no térreo).

Compromisso cumprido, mesona na sala de jantar, surgiu a pergunta:

   - Quanto lhe devo?
   - Uai, o sinhô qué pagá quanto?
   - Não sei... - espantou-se Seu Afrânio – Qual o preço médio do mercado?
  - Mió nem falá em mercado; si fô falá em mercado ocê num vai nem querê sabê! – disse Valdeliano, cruzando os braços e espremendo os olhos entre a franja e o aro dos óculos, enquanto balançava a cabeça com ares de sabedoria profunda. E os dentões sobrando pra fora da boca.

   - Vixi!... Então, que tal... Cem?
   - ...Cento e vinte?
   - Cento e vinte! – concordou Seu Afrânio, sacando o montante do bolso.

Valdeliano pegou, separou uma nota de vinte e a devolveu:

   - Ói, isso é pela ajuda ca mesa. Sem ocê num dava jeito... Brigadão, mês!

Seu Afrânio hesitou, e quando pensou em recusar, a Mulinha já havia partido.


créditos de imagem: joão sassi


quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

Festa Estranha com Gente Esquisita

Pergunte ao parente se tudo valeu a pena só pra ter um celular da ora.


      A classe estava repleta de estudantes de Ciências Sociais. Debatíamos catástrofes advindas da colonização no continente africano. Eis que um colega diverge do senso comum ao garantir que, preto no branco, a troca de dialetos primitivos pelo idioma europeu favoreceria os povos subjugados por conta do acesso de seus descendentes ao “mundo civilizado”. Em sua percepção, a escravização e o possível genocídio de algumas das populações afligidas deveriam ser interpretados como um mero dano colateral.

      Ficamos boquiabertos, ou mesmo indignados. E o mal-estar aumentava à medida que ele sacava argumentos como “é a verdade que ninguém quer ouvir”, ou “vocês gostariam de estar falando Tupi até hoje?”, e um punhado de disparates para defender seu modelo de inclusão sócio-cultural colonial. Este bem-intencionado rapaz estudava Sociologia e era o único dentre seus sequazes das Sociais a admirar ex-presidente FHC (nosso sociólogo mulatinho) e a defender ardorosamente o liberalista Adam Smith. Não demorou e o debate transfigurou-se em acalorada discussão, a professora pôs fim à aula, e Ferdinando – este era seu nome – permaneceu surdo em sua cadeira, ignorando a razão alheia com expressões de tédio e sono.

      Angustiado com a exposição das ideias desse ser de outro mundo, refleti sobre o porquê desse sujeito propagar seus equívocos em tom desafiador sem ao menos se dar ao trabalho de perguntar a quem sofre na pele as conseqüências da escravidão, sua opinião. Muito aluno poderia dizer-lhe com autoridade moral, empírica e histórica, o que acha do tataravô ter sido obrigado a cruzar o Atlântico em meio a bosta, doença e morte para (malgrado uma chibatada no lombo, uma marca de ferro quente na cara e um murro no estômago para não perder o costume) aprender a língua de Camões em Pindorama (posteriormente Brazil – Terra do Pato Amarelo), e, de quebra, ganhar um deus punitivo para adorar, um Cristo photoshopado de olhos azuis para reverenciar e uma religião cheia de culpa para se espiritualizar adequadamente. Se fosse mulher, a sorte não era tão grande, já que a benesse do aprendizado lexical seria inexoravelmente acompanhada de estupros e todo tipo de perversão sexual.

      Bem diferente daquilo que um dia sonhamos quando lutamos pelas Diretas, ou quando acabou a ditadura, ou, ainda ontem, quando pensávamos haver elegido um governo democrático, progressista e popular, o pensamento raso, reacionário, e individualista, típico de extremismos de direita, não estava em vias de desaparecer nesse nascedouro da Era de Aquarius, senão o contrário: as almas sebosas e os espíritos do Medioevo estavam apenas adormecidos no breu dos esgotos, enrustidos pelos bons auspícios que a atmosfera progressista da Novíssima República produzia. Mas hoje mostram sua cara, amparados pelo mau-caratismo em voga, através de faces muitas vezes familiares, como aquela tia querida de toda uma vida, o professor gente boa, o primo de Minas ou um amigo de infância; estão todos aí nas redes sociais defendendo pena de morte ‘pra bandido’ e longa vida a fetos sem qualquer garantia de uma sobrevivência orgânica ou social - sempre em nome do Senhor. Então você percebe que os Ferdinandos são muitos, e em número cada vez maior no prédio, na rua, na sala de aula... Festa estranha com gente esquisita.

      Paira no ar o cheiro da podridão. Uma nova e vergonhosa ditadura se avizinha, daquelas que nos farão olhar pra baixo, envergonhados pela capacidade que nossos irmãos latino-americanos demonstram em reagir, lutar e resistir, enquanto nós não. Há também cheiro de delinqüência, de ignorância e de superficialismo nos arredores. De preconceito, de difamação e de fanatismo na vizinhança. É forte o cheiro de polícia, de escuta ilegal, de porões, tortura. Instalado, o Mal ora viceja.

      Essa celeuma acadêmica ocorreu antes da conexão total que se experimenta atualmente. Foi num tempo em que para entrar no Orkut (!?) você tinha de ser convidado por um amigo bacana, aristocraticamente falando. Passados mais de dez anos, o advento de engenhocas futuristas desenvolvidas nesse período (smartphones) e de plataformas com poder catalisador suficiente para aglutinar bilhões de adeptos (Facebook e Twitter) revelou que nosso amigo imperialista da universidade não fora o único ET a perder o rumo de seu planeta. Ler comentários ou “opiniões” nas páginas da internet, nos dias atuais, é comprovar inequivocamente o fracasso do modelo evolutivo que experienciamos como seres humanos... (e o sucesso das teorias ferdinandianas).

      Basta uma simples análise desses comentários, bem como da constante reinterpretação da realidade perpetrada pelos haters, no mundo digital, para chegarmos à infame conclusão que Ferdinando deve estar rindo muito da cara de todos os que o consideravam um retardado quando, claramente, estava à frente de seu tempo. 



Créditos de imagem: joão sassi

quarta-feira, 3 de maio de 2017

Nossos Líderes e o Grande Acordo Nacional

Líderes mundiais (todos petralhas e mortadelas) dão distinção ao presida: onde está Wally?


Suspeita-se que Nossos Líderes sejam ladrões, e que venham pilhando a Nação desde há tempos, geração após geração. Há indícios que matem por terra, dinheiro e afins, conforme nos ensina a história, mesmo quando contada por eles mesmos.

Como no tempo do Santo Ofício, Nossos Líderes entendem que índio não é exatamente gente, como também não o são os pretos, os homossexuais, os humanistas e as mulheres, mesmo as recatadas, as do lar e as jornalistas de direita, assim como os pobres de qualquer sexo, idade ou cor. Não obstante, são crentes no bom Deus e devotos do nosso senhor Jesus Cristo – nenhum deles é ateu. Apesar da fé cristã, não aprovam a conduta subversiva do franciscano Supremo Pontífice. O papa Pancho, por sua vez, já colocou os nomes de Nossos Líderes na boca do sapo. E, para o caso da macumba do batráquio falhar, reza, dia sim, outro também, para que queimem todos no fogo dos infernos. Sendo representantes de um povo ordeiro e cristão, Nossos Líderes dão o exemplo e comungam diariamente (mas só em período eleitoral), mesmo que, ocasionalmente, sejam pedófilos, cafetões, espancadores de mulher ou estupradores e, frequentemente, madeireiros, latifundiários, escravagistas, contrabandistas ou ruralistas. Afora bispos, pastores, bicheiros e assassinos. Alguns dos quais, escritores e até poetas!

Nossos Líderes admiram caninamente a América e abanam o rabo para qualquer um dos 45 presidentes norte-americanos, à exceção do Barack que, embora não seja comunista, gay, pobre ou mulher, é preto. Nossos Líderes preferem os que se pareçam a John Wayne, e que ajam como tal, aniquilando índios e detratores do sistema, com o charme de quem sempre tem um maubôro à boca.

Nossos Líderes acreditam piamente na auto-regulação do Mercado, mas tacham de jurássicos os que falam em Socialismo – para eles, uma seita de fanáticos formada por maconheiros, estudantes de Ciências Sociais e outros desocupados; todos lobotomizados durante o Ensino Médio por esquerdopatas dogmatizadores. Comunismo, claro, é coisa do Capeta. Defendem com veemência o Estado Mínimo e entendem como dinheiro mal gasto aquele destinado a projetos de cunho social e redistribuição de renda. Se a redistribuição, no entanto, for para salvar bancos privados da bancarrota, aí zelam pelo Estado Máximo.

Além de alvos e anti-pederastas, são comumente bem abastados os Nossos Líderes, pois sem contabilizar quantias não contabilizáveis, sempre contam com a mão amiga do Estado que tanto odeiam, mas que lhes banca cargos públicos, supersalários, aposentadorias especiais e regalias que colecionam ao longo da “árdua labuta política”. E como labutam (principalmente no dos outros)! Há quem diga que fazem política por caridade e amor à República, e que se preciso for, recorrem às garruchas a fim de garantir os interesses nacionais; tese recentemente corroborada pela chacina de agricultores, no feudo de Mato Grosso, ou pela emboscada genocida feita aos índios, nas sesmarias do Maranhão. Nossos líderes entendem que não há forma mais objetiva e funcional de dialogar que com o porrete. O Brasil tem pressa. “Pau neles”, diria o pit bull palestrino.

Apesar do bom momento e dos holofotes que ora desfrutam (?), Nossos Líderes viveram os últimos anos envoltos em amargura e ostracismo por conta das sucessivas derrotas eleitorais. Com mais uma no horizonte, emergiram das profundezas com um plano para salvar o País mediante um Grande Acordo Nacional. O áudio com o audacioso plano vazou, de modo que o Brasil inteiro ficou sabendo do roteiro do golp... plano para nos salvar, com o Supremo, com tudo. Sendo mais engraçado pensar que todos os desdobramentos, desde então, não passaram de mera sucessão de coincidências, o golp... plano para salvar o país dos comunas, tal como sua revelação em cadeia nacional, em nada fizeram corar aquela parcela dos brasileiros que mais entende de surubas tenebrosas e camisas da seleção.

Com tantos sorvetes na testa, Nossos Líderes são motivo de chacota em todo lugar. Por aqui, gozam (leia-se, agonizam) com 9% de aprovação da sociedade que tentam salvar, enquanto lá fora, vivem o limbo geopolítico: são escanteados e isolados nas fotos oficiais, imploram por encontros bilaterais e tem visto de entrada negado nas terras do Tio Sam.

Ainda assim, e imbuídos por motivações de foro íntimo, Nossos Líderes elaboraram um pacote de ações draconianas que mergulhará o Brasil no mais absoluto atraso social. E assim, nesse balanço sem nenhum requebrado, a toque de caixa e com pedidos de urgência que ninguém enxerga e manobras regimentais que todo mundo vê, mas se cala, o golp... plano para salvar a nação tem sido seguido à risca, nos mínimos e mais ardilosos detalhes, com o Supremo, com tudo.