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O 28 de Julho é quase sempre uma data muito marcante para mim. Talvez muitos andarilhos experimentados não saibam, mas é nesta data que se comemora a Independência do Peru. Eu mesmo, até há pouco, não tinha conhecimento. Coisa de dois anos atrás, porém, uma amiga me contou. Era peruana e tinha um nome lindo: Yurica!
Mas, ainda que a referência seja proposital, servindo como uma homenagem àquela pátria, o seguinte relato nada tem a ver com a alegria de incas borrachos de pisco.
O que sei, é que no 28 de Julho do passado ano dos 1994, eu, Maltrapilho S. Santos, me encontrava numa missão de campanha, e era mais conhecido como Trintaeumzerodois. Servia no I Regimento de Cavalaria e Guarda, vulgo RCG – aquele, dos cavalinhos, do Sete de Setembro.
O acampamento era, de longe, o momento mais temido aos conscritos – os quase soldados. Após três meses de instruções básicas - que me possibilitaram aprender, dentre outras coisa, quem era o Patrono da Cavalaria ou como limpar a “bolsa” de um eqüino -, estávamos apto ao campo!
Seriam somente três dias de acampamento, onde, diziam, sofreríamos toda sorte de provação física e psicológica. De fato, à véspera da partida, soube que a tropa de instrutores seria formada inteiramente por voluntários, o que significa dizer que os cabos, sargentos, tenentes e demais oficiais presentes seriam também os mais sádicos do Regimento.
O local escolhido – um vale perdido, aos fundos do Setor Militar Urbano – não era longe, mas foram tantas as incursões pelo cerrado com tanto sol no capacete; tantas as simulações de bombardeio e de escapada mata adentro, com direito a mergulhos coletivos pelo capim seco, que demoramos todo o dia até alcançarmos a zona de conflito. A época do evento não era vã, visto que o Inverno era efusivamente saudado por nossos algozes como a época ideal para se ir a campo.
Durante a longa caminhada, por mais que a situação me parecesse real, não dava para imaginar um avião surgindo no horizonte com bombas de Napalm. Preferia me concentrar no melodioso chacoalhar dos cantis, que se chocavam sinfonicamente contra alguns penduricalhos da caserna, como fivelas e fuzis. Tchloc, tchloc, tchloc, tchloc, tchloc...
Mergulhar no mato, ao som de metralhadoras de festim, eu também gostava. Muitos faziam cara de Rambo; eu ria.
O primeiro objetivo fora cumprido: chegamos ao local, já extenuados e sem energia. A partir de então, as profecias se realizaram, e tudo o que era feito, tinha, intencionalmente, o sadismo como fio condutor. Xingamentos e humilhações, além de privações e maus-tratos; assim era o acampamento.
Ao final do primeiro dia, estávamos todos sendo instruídos em meio à mata. Qualquer erro era punido com um mergulho no rio. Cada vez mais encharcados, procurávamos nesgas de sol por entre as folhagens, a fim de não anoitecermos como pintos molhados. Pura perda de tempo. Ao mesmo instante em que a noite se fez presente, fomos obrigados a mergulhar, só para que dormíssemos molhados. Foram três dias com a mesma e úmida farda, dormindo ao relento, sem direito a trocar a cueca ou tirar a camuflagem da cara. Só via a cor da minha pele quando olhava meu pinto, na hora de fazer xixi.
Na missão empreendida naquela noite, certamente provei que de soldado eu não tinha nada. Eu era o líder da Patrulha Selva, composta por oito bravos homens “de confiança”, e haveríamos de colocar em prática tudo o que nos fora ensinado durante o dia: salvamentos de feridos, macas, tipóias improvisadas, etc. Tudo feito tarde da noite, sem luz, em meio à lama, à água e “à selva”. De repente, um grito horrendo de dor é escutado!...
Choros lancinantes. Pedidos desesperados de socorro em meio à escuridão. E surge, do nada, de lamparina em punho, nada menos que o capitão Sólon, o temido comandante do Primeiro Esquadrão. Sua presença empresta à cena a dramaticidade necessária, fazendo dali um Vietnã. Antes cansados e receosos, agora todos se entreolhavam assustados. É dada a ordem: “Trintaeumzerodois, o caso é sério! Há um homem ferido – aquele bizonho! - ao longo do córrego. Leve sua tropa e faça o atendimento necessário, rápido! Logo enviarei reforços! Vá, soldado!”.
De súbito, a Patrulha Selva estava embrenhada no mato, com água até a cintura (por vezes, até o pescoço) tateando uma linha que nos levaria ao homem ferido. Eu, à frente, já havia perdido o fôlego de tanto que eu ria. Sou do tipo de gente que ri quando fica nervoso ou descobre uma encenação, como parecia ser o caso. E ria, ria de perder a noção. Os demais, não sei se por ingenuidade ou medo, acreditavam em tudo, e iam, aos trancos e tropeços, passando por cima uns dos outros, ora pedindo ajuda, ora pedindo calma. Um, pendurou-se em meu pescoço para eu quase me afogar: “Não sei nadar! Não sei nadar!” -, berrava, aterrorizado. Engasguei muita água, e quando recuperei o fôlego, recomecei a gargalhar!
Para ser sincero, o que a muitos era terror, eu sentia como amor. Estar num lugar tão sinistro, no escuro, caminhando por dentro d’água e amparado por tantas energias não poderia ser algo ruim. Eu não temia nada, apenas ria e me divertia com o pânico alheio.
Logo adiante, nova lamparina, mais oficiais e o “ferido”. Era um cabo, e quebrara a perna prendendo-a numa entranha de troncos. Era preciso fabricar uma maca com nossa gandolas e levá-lo à base. E era gordo, o combatente; gente do rancho! Malditos sugadores...
Deitamos o militar em nossa maca e seguimos rio adentro. Eu, sempre adiante, e rindo muito, fui o responsável direto pela queda do ferido! Que, bobo nada, sartou de banda, evitando o mergulho completo. Só então os outros descobriram a farsa, e quiseram até bater no abestado.
Chegamos ao acampamento pouco depois, e fomos dormir.
Foi, indubitavelmente, a noite em que senti mais frio na minha vida. Acordei inúmeras vezes para fazer flexões, esquentar o corpo, e só então, conseguir dormir mais 15 ou 20 minutos, para então acordar e repetir o processo. No fim da madrugada, de tanta dor, senti vontade de chorar ao tentar desatar o nó do cadarço do coturno. Os dedos, atrofiados de frio, sequer os esticava. E olhava para minhas mãos, sem acreditar que eram minhas.
Logo, a manhã invadiu o vale, e tivemos, todos, a sensação de que o pior já havia passado. Ledo engano. Após mais uma jornada de intensas atividades, a Patrulha Selva encontrou novo desafio, noite adentro...
Tratava-se de encontrar as coordenadas por meio da localização do Cruzeiro do Sul; o tal azimute. É simples: faz assim com o dedo, tipo Paz e Amor, de lado, compara com a estrela inferior, faz um giro à esquerda e se traça uma linha imaginária perpendicular ao solo; pronto, ali é o Sul!
Foi-me dada uma série de coordenadas, e também um tempo-limite para nossa chegada ao ponto-final. E só. Dois detalhes: eu era míope e a noite estava nublada...
A empreitada foi madrugada adentro, até o momento e que, exaustos e sem qualquer sentido de orientação, entreguei os pontos. Já não agüentava caminhar a esmo, com galhos e espinhos pelo rosto, caindo em buracos e topando com pedras. Ordenei, então, “aos meus homens” que se deitassem, aguardando a Providência Divina.
Sentaram-se, formando um círculo, em silêncio. É como na guerra, que filho chora, mas mãe não ouve... -, pensei. E senti, verdadeiramente, vontade de saber da minha. Era quase de manhã.
Não muito tempo se passou, até que escutamos, vindo de longe, gritos de salvação; era o resgate!
Fomos a única patrulha a falhar na missão. E quando voltamos ao acampamento, imundos e esfarrapados, foi-nos dada a missão final: limpar fuzis. Era a punição pelo papelão.
Terminado o serviço, olhei para o campo que, coberto por uma névoa branca, escondia meus companheiros, encolhidos de frio, soltos pelo terreno...
- Trintaeumzerodois!... -, escutei, e quando me virei, recebi um novo fuzil e a seguinte determinação: - Tá de guarda! Senha: Brasil. Contra-senha: Romário.
Não podia acreditar... O sol já quase aparecia no horizonte, e eu ali, sem força para cuspir, tendo de montar guarda, com um fuzil à mão, e acordado! Parecia que todos haviam morrido, menos eu...
Foi quando escutei uma movimentação na barraca dos oficiais. De onde saiu, logo em seguida, uma fileira de homens. O capitão Sólon olhou para mim e, antes de qualquer outra coisa, disparou uma rajada de tiros pelo ar. Imediatamente, os demais, todos armados, passaram a jogar bombas de gás lacrimogêneo entre os soldados e a dar tiros de festim para o alto. Realmente, era um campo de batalha, uma cena de guerra.
Soldados acordavam atordoados pelo estampido das bombas, já sem frio, mas com medo, enquanto escutavam berros de “Independência!!!” , dados por um cabo dos mais sádicos: “É hoje que o Brasil vai ficar independente de vocês, bando de molóides!”.
Enquanto as pessoas corriam em desespero, sem nem mesmo saber pra onde, eu, “privilegiado” por não ser acordado daquela forma (o que certamente traria seqüelas aos meus sonhos), comecei a pensar que logo estaria livre daquela estupidez. Já não era dia da Independência do Peru ou mesmo do Brasil, mas 29 de julho; o dia em que, 19 anos antes, eu me tornara dependente de tudo e de todos, do Amor e do Desejo.
Logo, a manhã invadiu o vale, e tivemos, todos, a sensação de que o pior já havia passado. Ledo engano. Após mais uma jornada de intensas atividades, a Patrulha Selva encontrou novo desafio, noite adentro...
Tratava-se de encontrar as coordenadas por meio da localização do Cruzeiro do Sul; o tal azimute. É simples: faz assim com o dedo, tipo Paz e Amor, de lado, compara com a estrela inferior, faz um giro à esquerda e se traça uma linha imaginária perpendicular ao solo; pronto, ali é o Sul!
Foi-me dada uma série de coordenadas, e também um tempo-limite para nossa chegada ao ponto-final. E só. Dois detalhes: eu era míope e a noite estava nublada...
A empreitada foi madrugada adentro, até o momento e que, exaustos e sem qualquer sentido de orientação, entreguei os pontos. Já não agüentava caminhar a esmo, com galhos e espinhos pelo rosto, caindo em buracos e topando com pedras. Ordenei, então, “aos meus homens” que se deitassem, aguardando a Providência Divina.
Sentaram-se, formando um círculo, em silêncio. É como na guerra, que filho chora, mas mãe não ouve... -, pensei. E senti, verdadeiramente, vontade de saber da minha. Era quase de manhã.
Não muito tempo se passou, até que escutamos, vindo de longe, gritos de salvação; era o resgate!
Fomos a única patrulha a falhar na missão. E quando voltamos ao acampamento, imundos e esfarrapados, foi-nos dada a missão final: limpar fuzis. Era a punição pelo papelão.
Terminado o serviço, olhei para o campo que, coberto por uma névoa branca, escondia meus companheiros, encolhidos de frio, soltos pelo terreno...
- Trintaeumzerodois!... -, escutei, e quando me virei, recebi um novo fuzil e a seguinte determinação: - Tá de guarda! Senha: Brasil. Contra-senha: Romário.
Não podia acreditar... O sol já quase aparecia no horizonte, e eu ali, sem força para cuspir, tendo de montar guarda, com um fuzil à mão, e acordado! Parecia que todos haviam morrido, menos eu...
Foi quando escutei uma movimentação na barraca dos oficiais. De onde saiu, logo em seguida, uma fileira de homens. O capitão Sólon olhou para mim e, antes de qualquer outra coisa, disparou uma rajada de tiros pelo ar. Imediatamente, os demais, todos armados, passaram a jogar bombas de gás lacrimogêneo entre os soldados e a dar tiros de festim para o alto. Realmente, era um campo de batalha, uma cena de guerra.
Soldados acordavam atordoados pelo estampido das bombas, já sem frio, mas com medo, enquanto escutavam berros de “Independência!!!” , dados por um cabo dos mais sádicos: “É hoje que o Brasil vai ficar independente de vocês, bando de molóides!”.
Enquanto as pessoas corriam em desespero, sem nem mesmo saber pra onde, eu, “privilegiado” por não ser acordado daquela forma (o que certamente traria seqüelas aos meus sonhos), comecei a pensar que logo estaria livre daquela estupidez. Já não era dia da Independência do Peru ou mesmo do Brasil, mas 29 de julho; o dia em que, 19 anos antes, eu me tornara dependente de tudo e de todos, do Amor e do Desejo.
A todos àqueles afeitos a celebrações e improvisações, convido-os a estarem comigo, nesta noite (29), no Ninho do Urubu, a partir da 20hs, em volta à fogueira, com papicos e bebericos. Coisa simples, mas de coração. Sejam bem-vindos.
Vou oferecer água e sorrisos. Tragam o que mais lhes aprouver, s’il vous plâit. De pandeiros a cachaças.