sábado, 28 de novembro de 2020

O Fantástico Encontro Entre Zé Bigorna e Diego Maradona

 

Zé Biga: pinta de craque aos dois anos.
Hoje meu filho começou a gostar de futebol.

    Não deixa de ser, da minha parte, uma conquista pessoal, empenhado que estou nessa missão desde o seu nascimento, há cinco anos, quando estendi o manto rubro-negro no quarto da maternidade. A partir de então, todas as minhas bolas de estimação passaram a ser dele, e também as muitas outras que comprei pelo caminho – mais bolas que eu amealhara em toda a minha carreira.

    Aos quatro meses de vida, pela primeira vez ele viu nosso time se sagrar campeão, assistindo comigo à final da Copa São Paulo de Juniores. Antes mesmo de saber ficar de pé, conduzia a pelota sobre o tapete colorido de poliuretano enquanto se deixava pendurar pelos braços. Certa vez, minha unha grande do dedão machucou seu calcanhar, e ele me olhou com uma cara feia da porra. Passei a cortar a unha.

    E quando ele aprendeu a gritar “gol”, me soou tão agradável como quando aprendeu a falar “papai”. Comprei camisa do Flamengo e jogo de botão, além de construir um campinho de futebol no quintal de casa, com as próprias mãos, e batizá-lo em sua homenagem: Campinho do Zé Bigorna; tudo por ocasião do seu segundo aniversário, de temática futebolística, claro. Da festa, sobraram as traves de golzinho que passaram a ornamentar o campinho onde ele aperfeiçoava seus arremates, enquanto eu esperava pacientemente que ele crescesse o suficiente para que pudéssemos disputar uma partida à vera.

    O nascimento da irmã atravessou o caminho entre ele e o gol, pois eu já não dispunha do tempo necessário e não podia mais lhe dedicar atenção exclusiva. Quando íamos a campo, com a presença da pequena, a brincadeira se tornava caótica e sem a fluidez que ele desejava, causando mais contratempo que aperfeiçoamento. Eu falava de Zico e o trazia ao colo para assistir os jogos do Mengão, aos quais ele passou a rechaçar, com ciúmes dela, que se aninhava em meu peito para acompanhar cada concerto do time de Jorge Jesus. E nem mesmo um ano épico como o de 2019 foi suficiente para trazê-lo de volta à baila, com os dois gols de Gabigol contra o River tendo recebido mais atenção da caçula, de apenas um ano e meio, que do próprio guri. O campinho caía no esquecimento, e até as traves do golzinho eram corroídas pelo tempo, escoradas no muro cinza como esqueletos insepultos.

    Até que neste vinte e cinco de novembro, algo de espantoso aconteceu.

    Pela manhã, fazendo a marcação ilustrativa da baliza de futebol society que lhe seria presenteada pelo avô, lancei mão de dois cabos de vassoura fincados no gramado para que ele tivesse a noção do que está por vir, e posicionei a bola para que ele me experimentasse no gol. Sei que muitos dos pais que ora me lêem estão me julgando, “mas como esse pangó não pensou nisso antes?”. É, talvez eu tenha dado mole ao me amparar nas traves do golzinho, embora isso já não importasse diante das expressões de contentamento esculpidas na cara dele, revelando uma satisfação infantil despudorada.

    Após ter as primeiras cobranças defendidas, marcou três gols em sequência, o que o levou ao êxtase, dada sua natureza ultra-competitiva e o desafio que se impunha. Afinal, não era mais a monotonia do adversário molenga que eu interpretava jogando golzinho, e sim o papai dando tudo de si, propiciando inéditas injeções de adrenalina na corrente sanguínea, além de uma sensação desconhecida de êxito no semi-zerado córtex cerebral do Zé Bigorna. Então, após meter uma bola que bateu no pé da trave e entrou (apesar do meu pulo performático), vi sua boca se arqueando e os olhos se esbugalhando, empolgado como jamais havia estado. Nunca estivera tão entretido com o jogo, tão entregue ao deleite ludopédico. A irmã se esbaldava na piscina, concedendo a ele a liberdade de dar quantos chutes quisesse, e assim foi até a hora do almoço: “De tarde a gente joga mais, né, papai?”, assegurou-se, saltitante, com a bola sob o braço (e não largada ao sol, como era seu costume).

    À noite, emocionado pela morte de Maradona, mostrei a ele um videozinho de Don Diego fazendo aquecimento antes de um jogo pelo Napoli, com malabarismos virtuosos, como se estivesse se enroscando a um macaquinho de estimação, em assombrosa exibição de intimidade e sintonia com a bola e as leis da física. Ele se esticou em meu colo, aproximando o rosto da tela:

    - Quem é ele? – interessou-se, seduzido pelo novo mundo que se abria.

    - Maradona – respondi, sentindo o peito apertar.

    - Quero jogar igual a ele quando eu crescer – manifestou, impressionado com a sequência de embaixadinhas alternadas entre uma coxa e outra empilhadas pelo gênio atarracado.

    - Tem que treinar muito, meu lindo...

Ele ficou assistindo o restinho do vídeo, compenetrado, após o qual se virou e, com olhos de deslumbramento fixados nos meus, ratificou o desejo:

- Papai, eu quero jogar igual a ele quando eu crescer!

Cúmplice em sua descoberta de um herói de carne e osso, respirei sua alegria misturada à dor da realidade, e lutei para manter o sorriso. Abracei-o com carinho, contendo o choro, hesitante, sem coragem de lhe dizer que seu primeiro ídolo acabara de morrer.







photos by joão sassi

arte by marcya reis

quinta-feira, 23 de julho de 2020

Deus no Céu e Jesus na Terra




    Quando se anunciou que Jorge Jesus seria o técnico do Mengão, foi o mesmo que nada; jamais ouvira falar no nome. Entretanto, mesmo desconhecido, nada parecia pior que o time do Abelão, o que levou descrentes e ateus, como eu, a aceitar Jesus no coração.

    O gajo, com ares soturnos de verdugo pinçado das masmorras de um conto medieval, chegou contestando a docilidade com que o adepto rubro-negro se deixava entorpecer pelos ‘deuses de 81’, entregando-se passivamente aos júbilos da Era Zico, ao passo que os caminhos rumo ao Olimpo se esfacelavam no esquecimento. Com um agravante: o Flamengo se contentava com uma única Liberta e um único Mundial, com a magnética passando pano e cantando que há quarenta anos botara o Liverpool na roda! Quarenta anos, galera!

    Se estacionados em andaimes rebaixados desde o baile no time dos Beatles, subestimávamos clubes tal qual o paraguaio Olímpia (campeão mundial e tri da Liberta), é forçoso admitir que os tubarões do pedaço esfregassem as mãos nos confrontos de mata-mata; “Uêba! El Mengón és papa-frita!”, deleitavam-se, bem como as piabas continentais como o América (MEX) ou o Defensor (URU). Éramos do nível de um Argentino Jrs., de uma LDU, um Colo-colo, um Vasco da Gama(!!!) em termos de conquistas extraterritoriais, ó, pá.

    Isso até a chegada do portuga, com sua cara de manga chupada e olhar de conquistador ultramarino. “Tá mal, Arão!”, já no primeiro treino. “Esse é dos nossos”, pensou geral. Não era. Os “nossos” ficaram todos pelo caminho, à exceção de um ou dois. Muito pouco. “Lutem para que nestas paredes estejam estampados vossos rostos na próxima época”, bradou o Odair José lusitano, chocando o Ninho do Urubu e questionando a devoção improdutiva ao passado, quebrando o encantamento letárgico que se abatera sobre nós desde os 3x0 no Santos, em 83, e, principalmente, extraindo o jogador do flamengo de sua eterna zona de conforto ao defenestrar o raciocínio terceiro-mundista de que “aqui é Mengão, o time do Zico” resolveria alguma coisa – quando, em verdade, o manto sagrado há muito deixara de se impor aos adversários como uma bastilha inexpugnável, senão o contrário; a mítica 10 do Galinho, símbolo máximo do apogeu rubro-negro, agonizava, vilipendiada por Mugnis, Minhocas, Carlos Eduardos e que tais.

    E vieram os empolgantes 6x1 sobre o Goiás: meu irmãããããããão, há quanto tempo que tu não via o Flamengo fazer tanto gol, sem tirar o pé, e com tanta qualidade (alguém falou em 81?)? Quem viu, sabe; foi como nascer de novo! Era aquele o ‘time de índios’ que o Abelão rechaçava? Então me dá meu apito que já tô dando entrada na minha cidadania pindoramense! Após a peleja, os mais atentos haveriam de ter notado que nosso Roberto Carlos ibérico era o melhor cacique que a tribo da Gávea poderia ter. Um sonho inesperado, como um beijo do nada surgido de um fado sofrido, para em seguida nos apaixonarmos por aquele fiapo de homem algo bronco, mas terno, que até I LOVE YOU em libras sabia dizer! Olêêêêê-olê-olê-olêêê, mister, mister!!!

    E vieram batalhas épicas, sendo desta feita o conquistador português um aliado, e subitamente não éramos mais nós a temer as invasões bárbaras vexatoriamente freqüentes no solo sagrado do Maracanã, mas muitas das outrora temidas etnias é que agora batiam em retirada, atordoadas, engolindo cuspes e palavras, no desespero de salvarem escalpos, filhos e vergonhas, à medida que um sentimento de confiança extrema ganhava materialidade dentro de cada indivíduo de vermelho e preto - e já não era mais o caso de ‘se’ venceríamos, mas de ‘por quanto’ venceríamos.

    Nós, com menos de 60 anos, muito ouvíramos sobre um tal futebol total – será que era disso que falavam? Porque eu nunca tinha visto coisa igual. Nem tamanha simbiose entre jogadores, comissão técnica e torcida – a diretoria, embora eficiente, deixo de fora desse caldo saboroso porque é escrota (Garotos do Ninho?) e neofascista (Bozo?). E assim, taças, troféus, títulos e recordes se amontoaram durante o tempo exato em que nossa fatigada Mãe-Terra deu uma volta completa em torno ao Astro-Rei; mais canecos que derrotas. Assombroso.

    Torcer pelo Flamengo, como disse o Juca Kfouri, passou a ser sinônimo de torcer pelo bom futebol. Línguas deletérias, críticas e detratoras silenciaram, sobrando uns poucos recalcados a não reconhecerem que o futebol brasileiro havia mudado, ou, como brilhantemente definiu o renomado e célebre pensador afro-americano contemporâneo Bruno Henrique, havia atingido “ôto patamá”. Rivais passaram a celebrar como um título empates arrancados ao esquadrão flamenguista. Técnicos adversários caíam como uva (essa é uma homenagem ao Queiroz) e cânones eram reduzidos a pó enquanto vacas sagradas se viam condenadas a pastar em público. A cidade, o país e o continente foram conquistados, mas o comandante ambicionava o mundo. Falhou na primeira tentativa, mas o roteiro já estava pronto para 2020: campeão da Copa do Brasil, barreira dos 100 pontos quebrada no Brasileirão, tri da Liberta no Maraca e vitória sobre os Reds no Mundial, again, com novo baile. Aí o Jesus seria contratado pelo, vá lá, Barcelona, o Gallardo o substituiria e todo mundo viveria feliz para sempre.

    De repente, como no sonho pornográfico que sempre acaba quando a bola está quicando na frente do gol, o torcedor acordou. E também ele, que nunca havia sido tão feliz na vida; “estava no Paraíso e tive de decidir”. Covid, solidão, família, saudades da terrinha seriam suas justas razões e, quaisquer que tenham sido, haveriam de ser sumariamente aceitas e respeitadas. Seu choro nos braços de Rafinha e Éverton Ribeiro, na despedida, é revelador; ele sabe que jamais encontrará torcida como a do Flamengo, ou atmosfera como a do Maracanã. Aliás, ele logo descobrirá que, por lá, “mister” é protocolo, enquanto no Brasil se tornara marca registrada. Obrigado, Mister.