terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

Valdeliano Faz Frete

Valdeliano e seu caminho existencial: um feixe luz.

A franja sobre os óculos de aros grossos estacionados no meio do nariz, os dentes avantajados e o forte sotaque do interior mineiro conferiam a Valdeliano simpatia no jeito e comicidade na aparência. Dois dedos atrofiados na mão direita faziam a audiência se perguntar se escolhera a melhor atividade para sobreviver. A audiência é perversa. Valdeliano não teve muita escolha na vida.

Quando foi morar no antigo acampamento da Telebrasília, não havia pavimentação e tudo era precário. A lama subia na calça quando chovia e a poeira entalava na garganta quando não. Ali se estabeleceu após o segundo casamento, ocasião em que, além da mulher, perdeu o dinheiro que sobrara do primeiro, restando somente alguns caraminguás que guardara no colchão.

Quinquagenário, sem alternativa, empenhou-os numa camioneta de quarta-mão, fazendo do frete seu ganha-pão - a ‘Mulinha’ (porque cambaleante, rangenta e vagarosa) dava conta de pequenas mudanças.

Numa dessas madrugadas frias de maio ou junho, tão logo os cachorros do vizinho latiram para o primeiro infeliz que cruzou o beco, Valdeliano despertou. Vendo o breu, fingiu que não e tratou de colocar o travesseiro sobre o ouvido para pegar o sono pelo rabo. Não deu; a bexiga cheia não deixou. Alcançou os óculos sob o travesseiro e se pôs sentado. Agasalhou-se com a própria coberta e seguiu para a casinha, fora do barraco. Chovia fino. Era o resquício antes da estiagem no Cerrado. Pronunciou o queixo e bafejou aquele vaporzinho no ar... “Que friozin bão do carái!”, emendou, bocejando e espiando o céu acinzentado, ainda escuro. Acabou esbarrando num balde, fazendo-o tilintar pela pinguela; a cachorrada não perdoou. Deu sua mijada e, já sem sono, resignou-se em abandonar a coberta, agasalhar-se e ir à cozinha fazer o que comer.

Atarraxou no bocal a lâmpada que pendia no ar e ligou o radinho pendurado à estante de tábuas e tijolos, ao lado do fogareiro. Encheu o bule, colocando-o sobre a chama azulada de gás, e fatiou dois pães dormidos, enquanto escutava aquelas conversas de rádio AM. Meteu-os num forninho elétrico (que concertara após achá-lo num entulho próximo) e encheu de pó o coador; esperou o bule apitar e depois derramou a água fervida, precipitando um vapor cheiroso de café que valeu por um beijo de mãe, e Valdeliano se sentiu bem.

Em seguida, tirou do velho frigobar algo envolvido num pano de prato. Desembrulhou e cheirou com carinho; era queijo mineiro, “dos mió”! Conseguia com o vizinho dos cachorros - conterrâneo seu, que trazia aos montes e revendia na Esplanada dos Ministérios –, por isso Valdeliano não dava queixa dos latidos: preferia acordar nas madrugadas a ficar sem o “quejin”.  Satisfeito, cortou um naco e guardou o resto.

De um pote de metal, pegou manteiga e passou em cada rodela fumegante de pão tostado, empilhando-as no prato, junto ao queijo. Desenroscou a tampa de um frasco de vidro de onde tirou um bom punhado de açúcar para pôr no copo, já com café quente até mais da metade.

Comia tranquilamente, achando bom o barulhinho da torrada mastigada, e esquentava o corpo com a bebida quente. “Como um quejin pode sê tão branquin?”, filosofava, dentro da cabeça, envolvido numa atmosfera de abstração e regozijo. Súbito, o prato estava vazio, e pela frente o mundo real: transportar um tampo de vidro de quase três metros!

Foi uma manhã terrível, mas o serviço foi feito. Com doses cavalares de dor, aflição e esgotamento físico, Valdeliano venceu os três lances de escada em forma de caracol do bloco residencial, na Asa Norte, antes de deitar o pesadíssimo fardo na Mulinha, intacto. O que só foi possível com a solidariedade do zelador, do Seu Afrânio (o dono da mesa) e de um pintor prestativo. Arfando, mas agradecido, Seu Afrânio deu vinte pilas ao zelador e outras vinte ao pintor.

Quando se preparavam para sair, o carro de Seu Afrânio rateou. Valdeliano desceu da Mulinha com uma caixa de ferramentas à mão. Ficou quinze minutos escondido atrás do capô dizendo, “liga!”, “acelera!”, “tá bão...”, etc., e o carro funcionou bem.

– Meu irmão era mecânico lá em Minas! – gritou, montando na Mulinha e se picando para o local de entrega (que ficava no térreo).

Compromisso cumprido, mesona na sala de jantar, surgiu a pergunta:

   - Quanto lhe devo?
   - Uai, o sinhô qué pagá quanto?
   - Não sei... - espantou-se Seu Afrânio – Qual o preço médio do mercado?
  - Mió nem falá em mercado; si fô falá em mercado ocê num vai nem querê sabê! – disse Valdeliano, cruzando os braços e espremendo os olhos entre a franja e o aro dos óculos, enquanto balançava a cabeça com ares de sabedoria profunda. E os dentões sobrando pra fora da boca.

   - Vixi!... Então, que tal... Cem?
   - ...Cento e vinte?
   - Cento e vinte! – concordou Seu Afrânio, sacando o montante do bolso.

Valdeliano pegou, separou uma nota de vinte e a devolveu:

   - Ói, isso é pela ajuda ca mesa. Sem ocê num dava jeito... Brigadão, mês!

Seu Afrânio hesitou, e quando pensou em recusar, a Mulinha já havia partido.


créditos de imagem: joão sassi