terça-feira, 29 de dezembro de 2009

O Tempo da Dor


Quando senti a boca latejando, imaginei que o pior estava por vir. Havia mais de um mês o dente se quebrara quando, em vez de pipoca, mastiguei um milho. E eu protelava ao máximo a ida ao dentista.

Passava a língua e sentia a cratera formada. E tinha sempre a preocupação de dar uma boa escovada, como se isso bastasse para manter a casa limpa... Mas quando senti a gengiva pulsando, percebi que minhas festas de fim de ano poderiam ser tenebrosas. Nada como o incômodo e pontiagudo dedo do destino para me fazer caminhar.

A dor, quando não dói tanto, passa a ser muleta. Mas quando é dor doída, vira esteira, pois faz a gente sair do lugar. Assim é nas dores do corpo e da alma; tanto quanto maior o impacto e o sofrimento, maior a possibilidade de evoluir e se transformar.

Tinha também uma outra dorzinha que estava me incomodando já havia mais de ano; esta, no ombro. Mas era dor morosa, intermitente, que não me atinava a fazer coisa alguma. Só me servia de desculpa, e nunca de estímulo. Foram necessários doze meses até que eu fosse ao ortopedista me consultar. E mais um mês até que eu fizesse os exames necessários, e ainda outros dois até que eu os levasse ao doutor para escutar o diagnóstico: Tendinopatia Subescapular no ombro esquerdo. Receituário: antiinflamatório e fisioterapia. – “Não se preocupe, pois é um tratamento revolucionário, extracorpóreo”, disse o homem de branco.

O tempo passou sem que a dor o seguisse, preferindo o aconchego do meu ombro. Junto a mim, além de não ser incomodada, ganhara ainda a companhia da dor do dente quebrado.

Resolvi agir. Marquei a primeira das três sessões e descobri que o tratamento revolucionário era patenteado por um israelense sádico. Afinal, o que dizer de uma máquina que emite choques contundentes durante intermináveis 15 minutos? Não era nada comparado à via-crúcis de Cristo, mas não perdia em nada para um Rambo em mãos vietcongues.

Após a primeira sessão - não vou mentir - deu um alento danado! Fiquei feliz por perceber que as coisas mudam quando nos esforçamos para tal; até meti um sorriso na cara! E resolvi encarar o buraco no dente.

O sorriso logo se transformou em testa franzida ao escutar a avaliação da dentista: “- Ih... Quebrou até a gengiva e esse molar é muito grande; não tem como fazer nova obturação. Vou fazer um canal.”

Enquanto ela falava sobre canais e tais, não percebi o menor remorso em suas palavras. Ao contrário, senti que ela até se excitou com essa possibilidade. Com certeza era daquelas cedeéfes que gostavam de resolver cálculos complicados e que achavam História e Geografia “coisa de aluno vagal”. Era uma mineirinha feiosinha de uns 45 anos – daquelas com cara de quem sente muito prazer; de dia trabalhando; de noite gozando.

Coincidência ou não, foram necessárias três sessões para extirpar até o último nervo de meu ex-sólido molar. Ora estava na cadeira da dentista, entre anestesias e angústias, ora estava na cadeira do fisioterapeuta, entre eletro-choques e enfermeiras sorridentes. O doutor Roberpaulo parecia muito interessado na máquina de tortura israelense, pois olhava para ela com uma doçura que não dispensava às moças. Já na segunda sessão, me elogiou e disse, calmamente, que aumentaria a voltagem: - “Já podemos começar com o 'nível II', pois você resistiu bem!...”, exclamou! “Acho que dá para chegar ao quinto nível ainda hoje!”

- O senhor é de Minas?, perguntei.
- Não, mas fiz minha especialização em Belo horizonte. Nasci em Piracanjuba, no Goiaz...
- Conheço! Próximo a Caldas Novas. Tem uma pracinha bonitinha, com coreto e charrete para os turistas, não é? Ambiente tranqüilo...
- Já foi assim. Hoje tá cheia de maconheiro... Depois que a droga chegou lá, a meninada só que fazê fumaça.
- Normal...

De vez quando, a máquina se irritava e soltava uma carga elétrica duas, ou até três vezes mais potente! Aquilo doía. Dava vontade de bater em alguém, de tanta raiva. Mas o Doutor Roberpaulo olhava para sua máquina com tanto apreço que eu me compadecia e logo esquecia, voltando ao conversê sobre o fumacê.

Pensava em chegar ao fim do ano “novinho”, sem problemas de saúde, reciclado. Mas fatos novos apareceram para enaltecer minha provação.

Era dia de festa, churrasco e bebedeira. Música de qualidade. Pôr do Sol. Fotos lindíssimas de reflexos solares e sombras inebriadas. De repente, o som, o batuque na madeira, a excitação e um maldoso prego de ponta-cabeça na palma da mão. Sangue, decepção.

Hospital, espera, injeção.

Não há de ser nada. Ademais, eu havia de estar preparado e bem disposto para fazer a mudança. Dois amigos, no entanto, não foram suficientes para amainar o peso do fogão – um legítimo Brastemp, 6 bocas, de 35 primaveras. O mal jeito me pegou bem, e minha coluna amanheceu enferma. Logo a dor de alojou entre as costelas e bastava respirar para que eu visse estrelas. Sorte que o antiinflamatório do Doutor Roberval ainda fazia efeito: servia para o ombro bichado, para o dente estragado, para a mão perfurada e, agora, para a coluna entrevada.

Uma dor me fazia esquecer a outra. Mas esta nova, a da costela, me deixava triste, de querer chorar e chamar pela mãe. Logo eu, que sempre adorei dar um espirro gutural, não podia sequer pensar em bocejar! Parecia a seta do demônio rasgando minhas vísceras!

Logo, surgiu a idéia de que poderia ser gazes. O remédio que comprei era gostosinho – de framboesa – e me fez soltar um monte de puns. Mas a dor permaneceu ainda por uma semana. Perdi boas horas de sono por conta dela.

Então, de repente, não mais que de repente. Todas elas sumiram! O dente está restaurado, a mão curada, o ombro recuperado e a costela enjeitada.

Um novo ano se avizinha, e ainda que eu não tenha a mesma empolgação de menino, estou com o espírito renovado. Não somente em 2010, mas em 2000 e sempre, estarei presente; mais contente e resistente. Não por conta do corpo, que padecerá inexoravelmente, mas pela experiência vivida, pelas coisas passadas e aprendidas.

Viver dói, mas é gostoso demais.

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Maturidade Invernal

Fazia muito frio. Marcus Paulo, 11 anos, acordava bem cedo para ir à escola. No entanto, mais do que o abandono da cama morna numa gelada manhã de Inverno, o que realmente lhe tirava o humor era Laurinha, sua única irmã, mais nova que ele alguns anos.

Laurinha não tinha nenhuma obrigação em casa, de onde só saía para ir ao Jardim de Infância, à tarde. Ele, ao contrário, teve de assumir inesperadamente o papel de “homenzinho do lar” logo após a morte precoce do pai. Atordoado, via a infância cada vez mais distante.

Ela, por outro lado, divertia-se com as caretas de chateação do irmão que, querendo fugir às suas provocações, apressava-se o máximo que podia, mas nunca o suficiente. Ainda deitada, Laurinha se aninhava junto aos travesseiros e dizia “Isso aqui tá tão quentinho, Paulinho... Vai pra aula, não, bobão!”

Ele não respondia, mas a fuzilava com o olhar ainda sonolento. Sentia saudades de quando era pequenino como ela. De quando a escola era pura brincadeira e ele não tinha qualquer ingerência sobre o próprio destino; sentia saudades de não ter responsabilidades. E pensava, invejoso: “Um dia ela cresce, e aí, vai ver!...”

A rotina dele fora radicalmente alterada. Agora, além de acordar muito cedo, Marcus Paulo tinha uma série de obrigações e tarefas; como lavar a louça, comprar pão e leite, e até mesmo pagar conta de água na lotérica.

Ainda que lhe sobrasse algum tempo para a vagabundagem de outrora, lhe chateava ter que intercalar seus momentos de menino com os de homenzinho. Nada era como antes, e por mais que desejasse, jamais voltaria a ser. Quando menos esperava, lá estava Dona Célia, sua mãe, a dar-lhe uma tarefa inesperada. "Faça por você, por nós e por seu pai, Paulinho", dizia ela, constrangendo o menino.

Naquela manhã, como em todas as outras, saiu apressado e não pode tomar o café que D. Célia deixara sobre a mesa, antes de sair, ainda de madrugada, para o trabalho.
O estômago vazio lhe aumentava não somente o mau-humor, mas também a sensação de frio. Assim que abriu a porta de casa, sentiu a ponta do nariz quase congelar. O vento uivava frio em suas orelhas de abano, o que lhe causou uma insatisfação ainda maior. Quando abriu a boca para dizer um palavrão, produziu fumacinhas que o lembraram da cama, esquecida, ainda quentinha...

Invejou uma vez mais a infância da irmã, trincou os dentes e pôs-se a caminhar. A escola ficava a trinta minutos de sua casa.

Apesar do martírio matinal, Marcus Paulo sempre gostou da paisagem produzida pelo frio. Gostava de ver o céu cinza-escuro, ainda que fosse dia. Gostava das árvores despeladas e enegrecidas, com seus galhos fantasmagóricos, perfiladas pela alameda, como soldados em reverência ao “Grande Líder Paulinho”. E gostava, sobretudo, do clima de placidez que tomava conta da vizinhança; as coisas, assim, “paradas”, eram-lhe mais fáceis de ser reparadas. Não fossem as orelhas de abano, seria o Inverno sua estação preferida!

Enquanto caminhava, deixou para trás o mau-humor, os travesseiros e o cobertos; seus sonhos agora eram outros.

Chegando ao colégio, porém, seguiu rabugento, sem trocar palavras com ninguém. Assim assistiu às aulas do primeiro período; calado e faminto.

Quando olhou para o grande relógio, sobre o quadro-negro, excitou-se; faltavam poucos minutos para a hora do recreio. Não tirou mais os olhos dele. O recreio era criminoso – somente 15 minutos! – e uma eventual perda de tempo poderia lhe custar caro.

A cada volta do ponteiro maior, um sorriso se insinuava em seu rosto. Quando soou a sineta, estava porta afora, zunindo pelos corredores.

Em trinta segundos, era mais um entre dezenas de moleques que se acotovelavam e se esgoelavam em frente à lanchonete, implorando para que uma das duas senhoras que ali atendiam lhe desse alguma atenção. Àquele instante, Marcus Paulo desejou ser maior e mais crescido do que era.

Não havia fila ou ordem; ganhava quem tinha o sovaco mais alto. A única esperança de ser notado requeria um tanto de força e outro tanto de sorte. Em meio aos cotovelos e sovacos mal-cheirosos, viu menino rindo e até chorando. Por fim, alcançou o balcão, sobre o qual se debruçou para então levantar a ficha e gritar, repetidamente: “Um cachorro-quente! Um cachorro–quente! Um cachor...”-, e ser atendido. Então, tudo mais silenciou...

Viu a ficha sendo tomada de sua mão por uma das senhoras, e ela conferindo o carimbo “cachorro-quente”. Viu quando a senhora pegou, de dentro dum cesto, o seu pão já envolto num saquinho plástico. Viu quando ela pegou a faca de serra e fez um corte em sua superfície macia. E quando abriu a tampa da panela de alumínio, deixando escapar uma inebriante quantidade de vapor quente. E também quando deitou a salsicha sobre o pão, finalizando tudo com uma caprichada concha de molho de tomate e cebola. “Tô!” -, disse ela, entregando-o a Paulinho.

Com seu bem mais precioso em mãos, a meta agora era conseguir sair – algo quase tão difícil quanto entrar. De cabeça baixa e o lanche junto ao peito, Marcus Paulo ergueu os cotovelos e saiu chifrando quem encontrasse à sua frente; só assim para lidar com o mundo-cão.

Da lanchonete, escapuliu pela lateral do pátio e desceu um lance de escadas, de onde avistou os pinheiros perfilados que lhe dariam a devida proteção. Caminhando pelo descampado, sentiu novamente o vento abanar suas orelhas, mas logo alcançou a árvore pretendida. Nela, as raízes cresceram a ponto de formarem uma reentrância que a ele servia como barreiras e, ao mesmo tempo, recosto. Ali, Paulinho costumava se aninhar às escondidas, envolto em sonhos e devaneios próprios de quem precisa de um tempo só seu para pensar nas coisas da vida.

Confortavelmente instalado em seu trono, olhou para os lados e não viu ninguém. Resolveu, então, abrir o saquinho plástico de seu lanche. Dali, viu a fumacinha que saía, fazendo com que sentisse a melhor das sensações, além de deixá-lo com a boca cheia d’água...

A primeira mordida era ritualizada, e também a segunda e todas as demais, até a última. Marcus Paulo não sabia, mas a cada mastigada, a cada engolida, sentia o tamanho do prazer que só a maturidade dos seus 11 anos podia lhe conferir. O resto do dia, passou-o felicíssimo.