Logo, correu para a sala, escancarando as cortinas da varanda, donde avistava toda a razão daquele bem-estar; oh, gloriosa manhã de domingo!
Um sem-número de pensamentos lhe invadia a mente. Havia muito que se fazer. A vontade era de correr à casa de pessoas conhecidas, despertando-as com beijos, sorrisos e piadas, mas isso demandaria muito tempo. Amar sempre demanda tempo.
Mesmo que não houvesse um lago ao horizonte, cujas ondulações produzissem brilhos de um sol nascente, ainda assim; ainda que não se projetasse aos seus olhos um céu duma cor azul-anil, quase cristalina, e em sua face, uma brisa tão menina, mesmo assim, tudo lhe pareceria perfeito, posto que a beleza viesse de dentro, do fundo do peito.
O ranger do chão acusa a companheira, que, docemente, reclama. Ela, com aquela cara que todo mundo gosta, faz bico pela sua ausência na cama. Não é boba. Gosta dos seus dengos e dos seus sorrisos, e diverte-se com suas piadas matinais. Aliás, costuma abandonar os lençóis às gargalhadas e, quase sempre, inteiramente beijada.
Ele cede, com prazer, por prazer...
Após novo despertar, a fome. Tantas idéias surgem que fica a impressão de que o domingo não é um dia, senão muitos: café-da-manhã na padoca, caminhada descompromissada pelo parque, banho de cachoeira... Parece que só existem coisas boas a serem realizadas.
Talvez, aí esteja o segredo. Ele não entende o funcionamento do tempo e sempre busca, dentro de si, o tempo necessário para fazer o que gosta. Quando não se é domingo, esse tempo não existe, o que complica muito sua existência. Quando se é, sente-se senhor de todo o tempo do mundo, mesmo sabendo que a dimensão dum domingo seja mera aparência.
Ela, ao contrário, parece ter a chave do segredo temporal. Faz tudo ao seu tempo, com a leveza de quem sabe o tempo certo das coisas. Num minuto, está de pé. Noutro, está banhada. Linda. Cheirosa. De bolsinha a tira-colo, bem arranjada, de camisa arejada, shortinhos brancos e sandálias delicadas. Não carece de maquiagem. Tem brilho próprio.
Ele, sempre o primeiro a acordar e o último a se aprontar, diverte-se enquanto o tempo passa:
- “Tá pronta, neguinha?... Vâmo logo!...”
- “Tô aqui, lindo, na porta de casa...”
- “Ah, assim é melhor!...” -, e ri, no seu íntimo, “hehehe...”.
E, logo, desconversa, falando das muitas coisas que fervilham em sua imaginação. São tantos os assuntos que quase nenhum tem um desfecho. Ele é como a criança que lambuza os dedos de chocolate para comer mais quando o seu acabar. Mais do mesmo. O assunto, entre eles, sempre volta, renovado. Talvez, por isso riem tanto, e se beijem mais ainda, lambuzando-se a todo instante.
Mas não há tempo que resista ao seu tempo. Ele demora. Enrola. Mas o faz com charme, com jeito; ela adora!
O escovar dos dentes, feito pela casa, morosamente, por entre falas, perdigotos e idéias sensacionais. O dentista já lhe avisou que duas escovadas de 5 minutos rendem mais que uma de 10. Pelo que se conclui: apesar de entender de bocas, o dito profissional é malversado nas minúcias do sexo. E assim, vai ele, demorando o mais que pode, contrariando até ordens médicas...
Por fim, saem.
No elevador, sempre um reencontro com a adolescência, quando qualquer lugar não é um lugar qualquer. Para o bem da vida, não havia câmeras que os pudesse censurar.
À saída da portaria, eventuais moradores percebem a presença de um algo mais no sorriso do casal, que segue, num caminhar descompromissado. Vão a pé, pois domingo não combina com carro.
Ao chegarem, com uma fome de anteontem, escolhem a mesa e, já sorrindo à atendente, emendam, “O de sempre, por favor”. A mocinha fala que sabe o que é, mas sempre pergunta o que realmente se quer.
Enquanto esperam, saboreiam o jornal. Nunca falaram abertamente, mas adoram ler o jornal a dois. Ele quer saber do futebol, mas sempre passa os olhos pela primeira página, a fim de verificar se há algo que mereça atenção prévia. Discutem um ou dois tópicos e voltam-se para suas leituras. Adoram ler.
Num segundo, ela já está absorvida. Já ele, concentra-se menos. Gosta muito de observar quem passa ou quem fica. E projeta, nos outros, o bem-estar que sente. Apesar de sentir-se bem, contudo, não se sente bem entre os presentes. Sente-se diferente; talvez, mais livre.
Vê algumas caras fechadas e vê gente que não se fala. Gente que reclama e fuma cigarro. Parece até que não gostam do domingo.
Espichando a visão, alcança o sol, e com ele, as mulheres que passam. Não precisa desconversar. A companheira sabe que ele a tudo vê, e gosta muito do jeito que ele vê as coisas. Ele sabe que ela sabe, e também gosta muito do jeito que ela sabe das coisas.
E por entre pernas, rebolados e bumbuns, ele, maliciosamente, se diverte, imaginando os distintos despertares de cada uma delas... E olha para sua parceira, cúmplice de suas aventuras, mandando-lhe um beijo mental, por todo o carinho e cumplicidade.
Volta a atendente, sempre espantada com as piadas dele, a desculpar-se pela demora: “É que estou só eu e mais três novatas!”, já lhes servindo o desjejum: suco de laranja fresca, misto-quente e pingado – para ela, escuro; para ele, claro.
O jornal perde o encanto. A refeição parece lhes trazer muito mais vigor e lucidez que as informações de uma sociedade pouco amada.
Terminam quase à mesma hora. Ela, um pouco antes. Ele tem a gula nos olhos, mas ela é mais comilona. Apesar disso, sempre estranha quando ele, achando-se o cúmulo do requinte, mergulha o último pedaço de pão no café-com-leite; faz cara de quem não
entende.
Barriga cheia, coração contente.
Recolocam os óculos escuros e se levantam para ir ao Caixa.
Ele adora que o cálculo seja feito para, só então, advertir: “E tem também o Correio Braziliense...”, para então escutar a quantia final. Após receberem palavras de agradecimento por parte do comerciante, despedem-se.
Atravessando a rua e trazendo-a pelas mãos, ele diz:
- A conta sempre dá 17; hoje deu 16.
- É verdade... -, responde ela, atenta aos carros.
Do outro lado, pára , olhando para ela e, como se houvesse encontrado um ruído na doce melodia daquela manhã, diz:
- “Ou ele nos rouba toda semana, ou nós o roubamos nesta, hehehe!...”
Aquela mísera diferença quebrou-lhes a rotina... Mas nada que lhes roubasse o intenso prazer escondido numa frugal manhã dominical.