sábado, 12 de junho de 2021

As Valas Abertas da América Latina

    A bola está nos pés de Leandro, rente à linha lateral, já no campo de ataque. O Peixe Frito entorta o marcador e corta para o meio, conduzindo o esférico com sua elegância característica. Dá um passe diagonal rasteiro para um companheiro que vem em repentina aceleração, despontando na zona do agrião, na boca da meia-lua; é Zico. O timing perfeito dos craques é sabotado pelo piso do Defensores del Chaco – aquilo não pode ser chamado de gramado –, e a pelota alcança o Galo com pequeno atraso, de passagem, em meio a um repique matreiro, fazendo com que este a ajeite com azeite, num toque de craque, com o tornozelo, para arrematá-la com raiva, sem deixá-la tocar o solo, implodindo a meta guarany. Era um domingo de sol, tanto lá como cá, e o gol fez eclodir abraços entre tios, primos, pais, avós, agregados e empregados que assistiam à partida. Nada mais acontecia na casa; nada era mais importante que um jogo da seleção. E para mim, de apenas nove anos, nada era mais importante do que um gol de Zico.
 
    Corria o ano de 1985. A ditadura estava enterrada, o Galinho estava de volta ao Flamengo e a Blitz desbundava geral. Nosso êxtase era o êxtase das massas; a vibração era coletiva, e o povo brasileiro estava em evidência.
 
    A vitória sobre a turma das guaranias, no palco deles, se manteve como a única desde então, e só foi replicada na última terça-feira, uma semana antes de completar 36 anos. A quase efeméride, no entanto, teve menor repercussão que a vitória, em si, ou que a consolidação da liderança nas Eliminatórias, ou que os 100% de aproveitamento. O grande emblema da noite foi o enterro definitivo daquilo que a seleção brasileira um dia simbolizou, ocorrido com a divulgação de um manifesto, logo após a quebra do incômodo tabu, também por 2x0, e também com direito a gol do camisa 10. As semelhanças param por aí; basta ver o gol de um e a patuscada penal do outro, salva pelo VAR. 

    “Quando nasce um brasileiro, nasce um torcedor”, inicia o texto. Belo mote. Parabéns ao publicitário da turma. Sugiro patentear o slogan, ou logo a CBF se apropria. Fora isso, pergunto: e quando morre um brasileiro, o que acontece? Morre um torcedor e pronto? Lamenta-se e tchau? E se morrerem mais de um? Tipo... Uns 800 mil (chegaremos lá, não temam), o que é que rola? Lamenta-se 800 mil vezes? Ou (pior) lamenta-se uma vez a cada 100 mil valas abertas, como faz a autoridade máxima do País? O que vocês, como “grupo coeso”, pensam sobre as tais “questões humanitárias” (haja eufemismo!) abordadas de modo tão en passant, no referido manifesto? (By the way, já aprendeu a falar o Francês, menino Ney?) O que lhes parece levantar o caneco na mesma noite em que ultrapassarmos o meio milhão de cadáveres indignamente sepultados? Seria uma história bem constrangedora de se contar aos netos, temos de admitir. Mais: e se o grupo de “pensamentos distintos” (aparentemente sem vestígios progressistas ou humanistas), que está sempre atento à mídia e ligado nas redes sociais (e na CPI do Genocídio, espera-se), descobrir que esse meio milhão de tragédias familiares foi resultado de uma estratégia lunática posta em prática pelo mau militar, mau pai, mau marido, mau parlamentar, mau gestor, mau cidadão e mau cristão que hoje enverga a alcunha de comandante em chefe desta triste Nação? O que teria o grupo canarinho a dizer? Que em nenhum momento quiseram “tornar essa discussão política”? É isso mesmo? Too late, guys... 

    O devotado ambiente familiar descrito no início dessa crônica parece empoeirado, e não porque a seleção tenha deixado de nos dar alegrias esportivas, já que de lá para cá nos tornarmos hegemônicos no continente e no mundo (neste caso, ao menos em número de Copas). Também não tem relação com a estirpe da classe dirigente, pois Havelanges, Chedids e Guimarães não parecem destoar fenotipicamente de Teixeiras, Marins, del Neros e Caboclos da vida, com especialização gradativa no banditismo, que tornou-se transnacional. A sensação de que algo está fora da ordem, no entanto, se revela, não pela supressão das reuniões familiares para torcer pela seleça, que segue sendo uma tradição (ainda que minguante), senão pela ausência do sentimento que promovia esse tipo de reunião, embasado no amor espontâneo e arrebatador por um time que, sim, representava a Nação (a pátria em chuteiras, ipsis litteris!), e não na filosofia individualista de mandrakes encabeçada por cabeças-de-vento como Neymar Júnior.
 
    Sendo justo, é preciso frisar que nosso craque pop star é apenas fruto de uma semeadura feita muitas estações atrás, quando se conjecturaram a destruição do Maracanã, a venda dos amistosos a grupos estrangeiros, as tramóias com a NIKE e todo um case modernoso que, por fim, alijou o torcedor brasileiro do cotidiano do plantel nacional, numa transmutação que fez da Seleção Brasileira a Seleção da CBF. Talvez nossos amotinados nutelados ainda não saibam que a CBF seja uma instituição privada atolada na merda até o topo, o que torna demeritória, aos recém-nascidos, a integração compulsória à torcida por essa empresa, como sugerido no manifesto. Devemos dar aos pequenos a oportunidade do aprendizado e do estudo da História, para que um dia possam tomar seu partido, não acham? 

    Não por acaso, era exatamente isso que o Brasil inteiro esperava de vocês: que tomassem partido. Não tomaram. Peidaram na farofa. Amarelaram. E quem não toma partido, hoje, claramente se coloca ao lado do partido errado. Logo vocês, ídolos economicamente bem sucedidos, que se espelham tanto no american way of life, babando ovo e pagando pau para as celebridades norte-americanas, mas que agora sentem na pele a falta que lhes fez e ainda faz o estudo e o mínimo de consciência política. Majoritariamente bem formados e informados, os ídolos de lá entendem muito bem (aliás, reivindicam) o papel que lhes cabe na sociedade, agindo em prol dela e se posicionando POLITICAMENTE. Mas aí já seria pedir demais a vocês, né? “Já não basta ter saído da miséria, mudado pra Europa, ter uma super máquina na garagem, passar o rodo na mulherada, e o cara ainda quer eu me posicione sobre política? Não fode!...”. Sim, pode doer um pouco no começo, mas logo vocês descobririam que ser uma personalidade do esporte nada tem a ver com selfies de chapéu estiloso e óculos coloridos. 

    O primeiro gol, no jogo de 85, foi de Casagrande; uma das raras figuras do futebol brasileiro a se posicionar contra a ditadura, ainda como atleta, o que não o impediu de ter sucesso nos campos, tendo disputado Copa do Mundo, sendo ídolo da Fiel e campeão da Copa dos Campeões da Europa (atual Champions), pelo Porto. Casão representava (e representa) a contestação, a rebeldia e o inconformismo do jovem suburbano que gostava de rock e se ligava na política. Teve ninguém menos que o Doutor Sócrates como tutor – aquele que condicionou sua permanência no Brasil à aprovação da Emenda Dante de Oliveira (que possivelmente vocês não tenham a mais vaga noção do que se trata), e que apareceu com uma faixa na cabeça na qual se lia DEMOCRACIA (e não JESUS) na estréia brasileira na Copa de 86. 

    Diferentemente de quatro décadas atrás, optei por não assistir ao jogo da última terça. Acredito que milhões de brasileiros, que em outras épocas não cometeriam tal sacrilégio, fizeram o mesmo. Decerto não se sentem mais representados pela outrora amarelinha (desta feita, trajaram uma camisa azul degradê fashion da NIKE; perfeita para nossos metrossexuais apolitizados), enquanto os que se sentem, estão por aí, sem máscara, combatendo a ciência, apavorados por inimigos imaginários, desrespeitando as instituições e apoiando a ditadura (e não por acaso, vestindo a camisa da CBF, o novo símbolo do atraso nacional). 

    Enfim, caros comandados do camarada Tite (ou seriam apenas os ‘meninos da CBF’?), vocês tiveram uma oportunidade de ouro nas mãos, potencialmente mais impactante e revolucionária que a conquista do hexa, porque voltada para o benefício social imediato e longevo da população, e a partir da qual resgatariam a confiança e a admiração de todos nós com uma atitude honrada; bastaria ter fechado com o certo. Os 7x1 virariam nada ante a magnitude desse gesto solidário e consciente, todos os males seriam relevados, enfim!... Mas não: optaram por manifestar que estavam putinhos, que a CONMEBOL é boba, e que vão jogar mesmo assim, enquanto a oligofrenia governamental nos condena à morte. De modo que, aludindo ao desfecho do patético manifesto, está claro que a seleção a qual atendem não é mais a brasileira, e vocês já não simbolizam nada para o povo brasileiro, que não a covardia, a insensibilidade e a alienação.

2 comentários:

Frank Coe disse...

É isso aí, caríssimo Antropólico Maltrapilho, falou bem e disse tudo!

Vale lembrar que o DNA da turma é o que é. Vide as nossas estrelas maiores, Pelé e o nosso amado Zico, que nunca foram exemplos de valentia e consciência política. Sem falar na apatia política do maior time do mundo - de Zico, Júnior, Leandro...

Já a CBF, é desde a origem comandada por notórios bandidos.

Portanto, a impostura da turma do futebol nacional dirigentes e jogadores, é antes de tudo um problema de DNA ruim.

Salve Dr. Sócrates, salve
Casagrande e a turma da democracia corinthiana!!!

Iraè Sassi disse...

Sem palavras além das belas palavras do autor. Duro para quem ama o futebol, que viu ou idealizou esta história, esta simbiose entre povo e a magia da bola nos pés dos ídolos. Virou máquina de riqueza e opulência, abstrata, alienada, fora da realidade, inclusive atlética, pois nada mais se cria, tudo se copia, em busca dos "resultados", fomentando vaidades e "mitos" que não correspondem à realidade. Vistos de perto então, são deploráveis. Personagens acéfalos, com o cenário decorado ad nauseum pelos patrocinadores, seres sem vida que repetem slogans, sem noção, robôs endinheirados que são. O que são 500 mil mortos para eles? Um dia, quem sabe, o povo vai se reapropriar da essência do esporte, de maneira sadia. Não estarei aqui para ver.