terça-feira, 18 de outubro de 2011

A Paz de Cada Qual


Dia de luz, festa do Sol, e o barquinho a deslizar...
 

Cerca de dois anos atrás, o escocês Stephen Gough foi parar na cadeia.

A polícia o acusara de "perturbação da paz". Logo a paz, que, tal qual a utopia, nos estimula a caminhar, sempre a buscar por ela em nosso cotidiano de violência e desamparo.

Antes de virar prisioneiro, Gough havia sido marinheiro e caminhoneiro, não tendo, porém, encontrado nessas atividades o seu "eu natural e verdadeiro", o que o levou a se indispor com toda a sociedade.

Isso me despertou a desconfiança de que, de algum modo, a escolha de nossa profissão embutiria a possibilidade de nos redescobrirmos por meio da atividade exercida. Um redescobrir psicanalítico; cosmológico, por assim dizer, que nos conduzisse a uma paz interior, mas também coletiva - consequência clara do equilíbrio estabelecido.

Lembro, por exemplo, de uma estudante de psicologia que conheci na adolescência. Ela se utilizava de seus grandes olhos azuis para hipnotizar o interlocutor e extrair do abobabo suas necessidades. Da convivência, o que talvez tenha mais despertado minha curiosidade foi a percepção de que todos os psicólogos seriam doidos, e que “usariam” as outras pessoas para psicologarem-se a si próprios.

Aquele tanto de "por quês" com os quais estes profissionais pontuam os diálogos, mesmo em situações informais, não é gratuito; eles só querem se certificar que somos loucos – tão loucos como eles - para se sentirem mais tranquilos em relação à própria existência. Disso não me restam dúvidas.

Algum tempo depois, tive a oportunidade de ter contato com o mundo das artes cênicas, quando pude conhecer atores e atrizes, ficando logo claro que todos eram loucos também. A exemplo dos psicólogos, os atores se utilizam da condição em que se encontram para tornarem seu ofício um escoadouro para suas neuroses.

Quem frequentou sets de filmagem ou assistiu a ensaios teatrais sabe o que é um hospício; um bando de loucos ávidos por terapias grupais de psicanálise. Podem fazer qualquer coisa; podem ser qualquer coisa... Qualquer coisa! Difícil imaginar coisa melhor. Representar é a arte de psicanalisar, em público, a própria existência.

Demorou algum tempo até que eu me debruçasse sobre os antropólogos, quando pude, então, confirmar minhas suspeitas iniciais. Confesso que senti grande alívio por saber que não estava só nesse mundo.

Essa coisa de jogar uma determinada responsabilidade para o outro, tornando-o foco de sua pesquisa, não deixa de ser um refúgio confortável para aqueles que querem, conforme adverti no início, se redescobrir como indivíduo numa sociedade cada vez mais dicotômica e neurótica. O antropólogo parece querer sair de si para se reconhecer no outro, reencontrando-se consigo fora do seu espaço real, mas dentro de sua natureza primária e, portanto, mais "verdadeira".

Psicólogos, atores, antropólogos e toda a humanidade, no entanto, não precisam se preocupar com tanto estudo e especialização na busca de cada qual pelo seu EU verdadeiro ou pela sua paz interior.

Dia desses, poucos minutos após ser posto em liberdade, Stephen Cough, nosso heróico escocês, voltou a ser preso. Alegação: se recusar a usar roupas e perturbação da paz, disse o juiz - exatamente pelas mesma razões de outrora, quando atravessara toda a região da Cornuália em pêlos.

Durante os 60 segundos de liberdade, esteve nuzinho, de mão no bolso e tudo, exatamente como veio ao mundo. Nada mais humano, portanto! Stephen se sente mais livre na cadeia - mas pelado - do que fora dela, tendo de se vestir.

Encontrou-se.


(Aproveito para mandar um beijo especial à Brasil, a mais doida de todas as psicólogas que conheci e amiga de toda uma vida.)




foto de joão sassi


8 comentários:

Henrique disse...

Dom João !

És um grande artista das palavras. Valeu.

Fui!

O Maltrapa disse...

Muito grato, Monsieur Curadô!

Aliás, se sou bom com as letras, o que se dirá de ti, em relação às formas? Parabéns pelo sáite!

Abraço forte,

O Maltrapa indica www.henriquecurado.com
(para festejos, gorés-gorés e algo mais)

Moema Brasil disse...

Ué, João, pensei que eu fosse a mais sana de todas as psicólogas que vc conheceu... hahahahahahahaha
Valeu pela lembrança carinhosa.
Bjs saudosos

O Maltrapa disse...

Só pelo tamanho da gargalhada, já se nota o grau de sanidade da dotôra, hehehe...

Lembrança carinhosa, sempre!

Beijão,

O Maltrapa

Ps: ao próximo convite não refugarei!

Luis Hernández disse...

Excelente como sempre, meu amigo Atlante!

Luis

O Maltrapa disse...

Boas energias de Atlântida, amigo Luis. Bom saber de ti por aqui!

Visca, Canárias!

Abrazos del Maltrapa

Digitais Digitais disse...

Viva! Viva! Viva a sociedade alternativa!!! ehehe Libertem Stephen Cough!!! "Não tenho escolha CARETAS,vou descartar...!!!"
Engraçado q estava conversando exatamente o que disse no texto sobre os atores e os psicólogos esses dias... A libertação é anterior a tudo que tá fora do corpo!!! rsrs No fim das contas o ator usa a mentira para expor a verdade contida!! É um atormentado por um tumorMental encrustado na universalidade de cada indivíduo... rs
Bjs na alma,
Otávio - AtorMentado

O Maltrapa disse...

Atormente-se, mas continue a beijar almas Otávio! Afinal, toda mentira, quando usada para dizer uma verdade, torna-se, ela própria, uma fonte de sinceridade.

Que venham chuvas de verdade e colheitas de mentiras verdadeiras.

Abraço forte do Maltrapa