terça-feira, 4 de outubro de 2011

Simba Simbólico


Simba era apenas um ponto preto na estrada.


Quando minha mãe soube que eu cuidaria de um cachorro abandonado, ela viu um grande simbolismo na minha atitude: "Tornar-se responsável por uma vida; é este o primeiro passo para que um dia você possa ter um filho."

Lembrei também daquela tradição que contam sobre os judeus que afirma que eles presenteiam as crianças, ainda pequeninas, com animais de estimação, fazendo com que os pimpolhos aprendam a lidar com a idéia da morte e com a sensação de perda, desde sempre, evitando que sofram mais quando conhecerem a vida como ela é.

A mim, em meio à solidão que uma casinha no mato me oferecia, era a oportunidade de aprender coisas novas, me permitindo conviver com um tipo de bicho com o qual eu nunca fizera questão de me relacionar, senão no que fosse indispensável.

Ao leitor que me acompanha desde 2009, não é necessário relatar o quanto esta parceria vicejou e o quanto aprendi com Simba. Ainda mais quando ele adoeceu, tendo merecido de mim sentimentos de compaixão os mais bonitos; foi quando nos tornamos cúmplices.

Após quase 3 anos de compadrio, tendo a antiga morada sido deixada para trás, Simba pôde conhecer novos ares ao ser carinhosamente acolhido por com um bucólico casal de amigos. Eles também tem muito a ganhar com Simba por perto; além da proteção, ganham um olhar de afeto. E assim tem sido, desde há alguns meses, quando o deixei em boas mãos.

De vez em quando, passo por lá, de surpresa, a ver como o gajo está. É sempre prazeroso rever um cachorro que lhe estima.

O sol estava forte, e então me lembrei que deveria visitar o velho Simba. A reboque, lembrei de descolar um shampoo canino e, para alegrar o bom cão, vísceras desidratadas que fazem a alegria das matilhas.

Quinze minutos depois, eu escutava um chorinho qualquer pelas ondas da Rádio Nacional e me sentia feliz por ser Sexta-feira. Já estava noutro mundo, dirigindo por uma estradinha de terra vicinal, de mão única, em meio ao Cerrado, vislumbrando uma paisagem que logo deixará de existir. O Plano Piloto é cada vez mais ancho, ao contrário da mentalidade da gente.

Quando cheguei, enfim, ao seu novo lar, não encontrei em casa viv'alma.

Estranhei que Simba não aparecesse, e dei busca arrodeando o ambiente. E lá o vi, sonolento e preguiçoso, um pouco sem viço para uma manhã tão bonita. Ao me reconhecer, por fim abanou o rabo e se pôs a interagir. Mas de tão sujo e empoeirado que estava, decidi levá-lo para um mergulho no rio que corre perto dali.

Simba se animou e logo já era o velho cachorro de rua que conheci, lépido pelas trilhas da cachú, liderando a expedição e farejando calangos pelo mato seco.

Há muito tempo não curtíamos um momento desses. Foi um banho gostoso e refrescante, daqueles que deixam a gente contente pelo contentamento alheio. Daqueles que despertam carinho e aproximam o homem do bicho.

Deixei ele limpinho. E depois mimei. Tirei fotos. Fiz caras e bocas. E dei petisco enquanto o sol lhe secava a pelagem. E também me atirei na água antes de voltarmos, ambos muito felizes.

Cuidei que tivesse água fresca para beber e o servi com a ração da melhor qualita, com o selo "Leite Tipo A" de qualidade! Comeu com a fome de um caminhoneiro.

Já de barriga cheia, pêlos lavados e alma leve, dei-lhe novo banho de carinho, quando ele pôde aninhar a cabeça sobre minhas coxas e grunir gentilezas sobre o quanto sentia minha falta. Fechava os olhinhos e fazia grumf, grumf, grumf, esfregando as bochechas contra minhas mãos. Foram momentos delicados, por conta dos quais revivi o tempo que desfrutei de sua companhia, sentindo os efeitos prazerosos que uma relação afetuosa acaba produzindo.

Com ele já relaxado, refestelado no chão fresco de ardósia da varanda, resolvi que era hora de ir. Faltou combinar com ele.

Situada na área mais baixa do terreno, há que se percorrer uma verdadeira montanha-russa para chegar ou sair da casa, subindo e descendo morros. O primeiro deles - o maior - tem de ser percorrido por inteiro. Íngrime ao extremo, se o carro não vai até o final, tem de voltar tudo de ré, cá embaixo, para tentar subir em novo embalo. Mas quem disse que Simba me deixava ir?

Era começar a subida e lá vinha o cão em meio ao poeirão, latindo e pulando ao meu lado. Eu freiava e mandava: "Pra casa, Simba!!!" -, mas tinha de voltar ao sopé da ladeira para reiniciar a subida, sempre com o Simba no meu encalço, feliz que só ele, achando que a "brincadeira era esta": eu acelerava, ele corria, eu freiava e gritava e logo a gente voltava! E tudo se reiniciava. Eu evitava acelerar muito, não querendo imundiçá-lo com a poeira, mas ele se recusava a parar com a perseguição.

Apelei para mais uns acepipes desidratados, tentando ludibriar o pobre canídeo, escapando enquanto ele os mordiscava. Saí de fininho, e quando pensei estar livre, lá estava ele no espelho retrovisor! Desta vez, não tive dó, pisando fundo no acelerador.

Atingi o cume do morro e segui adiante, sem querer olhar para a retaguarda, descendo nova ladeira e subindo novamente, até chegar ao topo do morro seguinte, para só então dar uma avaliada.
Parei o carro e olhei para trás. A poeira foi baixando, baixando, até que a estrada ficasse limpa. Senti um alívio grande por não avistá-lo. Alívio este que não durou mais que alguns segundos.

Deu para vê-lo ao longe, no topo do primeiro morro, como um simples ponto preto no meio da estrada de terra vermelha; era tocante.

Nem esperei para ver, senão sentiria vontade de voltar e abraçá-lo. Acelerei e desapareci, produzindo nova nuvem de poeira.

Um ponto preto perdido no meio de uma estrada no fim do mundo, pode ser nada, pode ser tudo; pode ser um ponto de partida.

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