quarta-feira, 19 de maio de 2010

Piano Bar


Assim que fechou a porta, Lígia colocou a bagagem sobre uma cadeira, passou os olhos pelo espaçoso quarto e fixou o olhar nas almofadas, sobre a cama, deixando escapar um lamento qualquer.

Caminhou mais para perto e se sentou na beira do colchão, afastando as pesadas cortinas, até conseguir poder olhar, através da janela, os últimos riscos coloridos do dia que se encerravam no horizonte. Voltou o rosto para a cama e passou a mão sobre o edredom, para depois agarrar um dos travesseiros e dar mais um suspiro; desta vez, ainda mais lamurioso. Não era a primeira vez que estava ali, mas era a primeira vez que se sentia tão só.

Como empresária, Lígia era obrigada a fazer inúmeras viagens semanais. E logo na primeira vez que se hospedou naquele hotel, anos atrás, conheceu Mariano, o barman do restaurante. A sintonia entre os dois foi enorme. Tanta, que o jovem funcionário passou a bater ponto na suíte dela; naquela e em todas as estadias seguintes.

Ela, para além dos 40 anos, era uma mulher autoconfiante. Bem sucedida e bonita, cativava e receava aos homens também pela segurança e autoridade que transmitia: - “Homem tem medo de mulher inteligente!”, costumava dizer.

Com Mariano, vivia uma paixão fugaz, instintiva. O rapaz, apesar de quase 20 anos mais moço, tinha pedigree, falava bem e sabia lidar com as mulheres - e não era burro. Daí ser tão prazeroso, àquela formosa dama, passar tantas horas ao som característico do piano, embalada pela espirituosidade de Mariano, que não perdia a oportunidade de lhe fazer um gracejo ou de lhe direcionar olhares libidinosos, num ritualístico prenúncio para a luxúria que vinha a seguir.

Ainda assim, Lígia o considerava ‘puro de espírito’, e bem diferente dos yuppies mauricinhos e demais profissionais liberais que pelejavam por sua atenção, de maneira insistente e, costumeiramente, arrogante.

Naquela noite, porém, Mariano não daria o ar de sua graça.

Em sua chegada, passando pelo lounge do restaurante, Lígia dera pela falta do amante, tendo logo se informado de que o rapaz viajara para fazer um curso de aprimoramento, no exterior. Ficou tão desconcertada que mal conseguiu disfarçar a surpresa diante de um sorridente recepcionista.

Lígia tinha um dia-a-dia cheio de tarefas estafantes, e tinha nas noitadas com Mariano a fórmula para não se estressar. Aprendeu a tirar do desejo sexual saciado o combustível para participar de intermináveis reuniões e apresentações com clientes e executivos. Nem apresentação com PowerPoint lhe dava sono!

Mas, agora, tão logo soube da malfadada viagem do ‘afilhado’, nada parecia estar no lugar; nada parecia agradá-la. Nem a cama, nem os quadros, a decoração ou a bela vista da janela... – “Logo hoje, que eu queria tanto!...Que eu precisava tanto!”, choramingou, aflita. – “E nem para me avisar antes, o viadinho!...”.

Desprevenida, sentiu-se ainda mais chateada por não ter nenhum ‘plano B’; havia confiado toda sua expectativa na visita do barman...

Começou a tirar os sapatos de salto que a machucavam, e pensou, mesquinhamente, que as coisas poderiam dar errado, e que Mariano talvez fosse obrigado a voltar o quanto antes - e, de preferência, com um pedido de desculpas pela 'deserção'!

Já sem roupas, olhou-se no espelho e viu uma linda mulher! Acariciou-se, delicadamente, imaginando como seria aquela noite se tudo saísse conforme seu desejo... Passou as mãos por dentro das coxas, subiu por entre os pêlos pubianos e seguiu pela barriga, achando sensual a pequena saliência, até encontrar os seios fartos, segurá-los com volúpia, encarar a si mesma e dizer: - “Eu mereço um homem!”.

E dizendo isso, subitamente se lembrou-se de outro rapaz, também funcionário do bar, que, desde sempre, apresentava-se com um sorriso de uma malícia típica do que sabem o que os demais ignoram. Era Cristiano, o garçom engomadinho, quem lhe levava os drinks quando Mariano estava muito atarefado atrás do balcão. Tinha um cabelo bem escuro e brilhante, sempre penteado de lado, com topete; a pele alva e bem cuidada. Os olhos eram pequenos e brilhantes como azeitonas pretas em óleo virgem de oliva, e a boca volumosa e bem avermelhada. Era educadíssimo e de poucas palavras.

Lígia costumava fantasiar Mariano contando a Cristiano todas as aventuras que viviam, torcendo para que um dia viessem visitá-la, juntos. Mas bastava ela tocar no assunto que o barman se irritava, e logo tergiversava, mudando o rumo da conversa.

Já no banho, Lígia seguia alimentando a imaginação, antevendo sua chegada ao lounge e a desfaçatez com que o atravessaria, indo se sentar no banco de sempre, próximo ao piano, para então aliciar o incauto Cristiano: - “É claro que ele já sabe de tudo... Imagine se o Mariano não iria contar... Há anos que esse menino me come!... Imagine se já não contou até os detalhes, de como eu gosto de fazer e todo o resto...”, regozijava ela, de olhos fechados, sentindo a água quente da ducha percorrer todo seu corpo. Nesse momento, Lígia sorria por uma noite reinventada, e já nem se lembrava mais da tristeza de momentos atrás.

Pensava agora em Cristiano, e com tal desejo que se dispôs até mesmo a vestir uma calcinha vermelha, cheia de transparência e bem cavada que costumava guardar para as noites mais acaloradas. O contorno estava bem feito, e as pernas, depiladas. Não havia uma mancha e sequer um único pêlo encravado ou inflamado que obstruísse o perfeito delineamento de seu corpo.

Passou ainda um hidratante que deixou em sua pele uma sensação de frescor que contrastava com o ardor de suas intenções. : - “Calma, garota, calma...”, pensava, conferindo animadamente o resultado da maquiagem, reforçando o batom vermelho impecavelmente deitado sobre a boca e arqueando ainda mais os olhos para retocar o traço do lápis preto em suas bordas, bem como o brilho sob as sobrancelhas.

Antes de sair, desarrumou um pouco o ambiente, emprestando-lhe um ar mais despojado, conforme os desmandos de seus impulsos. Sentia-se ainda mais solta por conta das três taças de champanhe; a quarta, derramou-a na pia, pois ameaçou ficar mais tonta do que deveria. E quando tudo ficou pronto, ainda borrifou um pouco de perfume pelo ar. Olhou-se pela última vez no espelho e perguntou, fazendo cara de malvada: - “Vamos ver do que você é capaz, Cris!...”.

Caminhou pelos corredores com o ar renovado. Entrou e saiu do elevador com brilho no olhar. E atravessou o hall central em 'estado de luz', recebendo sorrisos e cortesias por onde passava. Quando chegou ao lounge do restaurante, levitava.

Sentou-se em seu lugar predileto, sendo logo notada pelo pianista, que não tardou em tocar sua música preferida: Moonlight Serenade. Cruzou as pernas com elegância, deixando escapar calmamente a fumaça do cigarro que acabara de acender. Em seguida, reconheceu a silhueta de Cristiano, que se aproximava, trazendo na bandeja seu Kir Royal. Ao notar o sorriso malicioso do rapaz, Lígia sentiu um comixão entre as pernas, fechando os olhos, prazerosamente...
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gravura: albertofughi.com

5 comentários:

Carol Sakurá disse...

Hum,Maltrapa!
Que sensual!
rsrs
"Ao notar o sorriso malicioso do rapaz, Lígia sentiu um comixão entre as pernas, fechando os olhos, prazerosamente..."
Adorei isso!
Beijos!

Roseane z disse...

c'est la vie.........não tem tu, vai tu mermo!!!!!Gostei do clima "noir".bbjjiinns da Z.

Eliana Lucena disse...

Li emais uma vez adorei o seu olhar especial sempre com uma dose de suspense que prende o leitor do começo ao fim. beijão.

Eliana Lucena

Márcio disse...

Só hoje parei para ler com calma o texto novo, Lima Santos. É notável a evolução na criação do clima, pois não é tarefa fácil descrever bem, evitar os excessos, particularmente de adjetivos. Te falei do livro que um cara que domina esse métier, que é Gay Talese. Gostei tanto de um trecho em particular de "Fama e Anonimato", que o digitei (nem a tradução prejudicou) para tê-lo sempre à mão:

Ele a viu quando ela atravessava a Lexington Avenue, vinda da Bloomingdale’s, e logo se pôs a acompanhar seus passos. Ela passou pelo quiosque do metrô, passou pela catraca e se postou na plataforma, entre uma máquina de chicletes e o enorme pôster de um homem de sorriso arreganhado que conseguira um emprego por meio de um anúncio no New York Times
A moça teria uns 25 anos. Tinha pernas compridas e bronzeadas, cabelos loiros curtos e puxados displicentemente para trás – talvez com os dedos. Trajava um vestido amarelo simples, luvas brancas, e estava sem maquiagem. Seu corpo era esguio e anguloso. Era o tipo de jovem que se vê no East Side, fazendo compras na Bloomingdale’s, saindo de delicatessens caras, carregada de sacolas ou indo para casa de ônibus, pela Fifth Avenue, depois do trabalho. Essas jovens costumam evitar o metrô, mas vez por outra se enfiam nele, e quando ela entrou, ele a ficou observando.
Outros homens também a olhavam. Certamente a moça tinha consciência disso, mas não passava recibo. Fazia parte do jogo. Os homens tentavam ser sutis, andando na plataforma fingindo indiferença, vez por outra observando a imagem da moça refletida no espelho da máquina de chicletes. Muitas vezes eles se surpreendiam uns aos outros nesse jogo, e às vezes trocavam um sorriso torto. Às vezes se recompunham, assumindo uma postura altiva. Quando o trem dela chegou, ele a seguiu, mantendo-se alguns passos atrás dela, e a viu sentar-se do outro lado do corredor, os joelhos bem juntos, as mãos enluvadas recatadamente pousadas no colo, os olhos azuis inocentemente fixos em frente.
O trem começou a ranger nos trilhos, rumo à Fifth Avenue, as luzes do túnel escuro passando rápido, uma senhora gorda com uma sacola da Macy’s balançando sem parar, os homens espiando a moça bonita por cima dos jornais; ela não ousava olhar para eles – para não estragar a imagem da inocência no metrô.
Se ao menos acontecesse alguma coisa – se ao menos o trem tivesse uma pane, se as luzes se apagassem, se a mulher gorda caísse - , haveria um pretexto para falar com aquela deusa sentada a um metro e meio de distância, do outro lado do corredor. Mas nada aconteceu. O trem seguiu em frente normalmente, como sempre acontece quando a gente não quer que seja assim.
Parou na Fifth Avenue.
Depois na Forty-Ninth Street.
Depois na Forty-Second Street, e então a jovem levantou-se rápido, firmou-se no balaústre por um instante e se foi – como todas as outras garotas encantadoras e atraentes que ele vira em Nova York, com as quais nunca falara, e que ele provavelmente nunca mais veria.





Gay Talese, “Fama e Anonimato”, págs 40 a 42.

E aí: identificou-se? Gostou/desgostou?

O Maltrapa disse...

Muito bom, Contreiras! Ainda que eu não tenha qualquer familiaridade com as ruas de NY - o que me faz perder alguma coisa do texto - dá para usufruir da atmosfera que ele criou. E a experiência é universal; quem não passou por situãção semelhante?

Abraço,

O Maltrapa