terça-feira, 21 de julho de 2009

Natureza Humana – Dois Pesos, Duas Aranhas

Aqueles que acompanham o antropólico ladrilhar deste maltrapilho, sabem que o Ninho do Urubu é onde recarrego minhas energias, intercambiando-as com as da Mãe Natureza.

Quando me mudei para lá, só queria saber de mato. Os trinta anos passados no Plano Piloto haviam atingido um ponto de saturação, e viver ali, por entre superquadras e comerciais, tornara-se, há tempos, um real dissabor. Era preciso escapar!

Brasília, observo, está precocemente envelhecida – surpreendentemente reacionária para um sonho tão jovem. E cafona. O azul-anil do céu deu lugar ao azul-las-vegas dos arranha-céus, poluindo o horizonte, estabelecendo-se como a marca indelével do neo-greco-goianismo candango, ora reinante nesta provinciana capital.

Brasília parece velha também na moda. Aqui, não se vê pernas ao leo. É muito tailleur e muito salto para pouca camiseta e pouco chinelo.A falta de um contato real dos meus pés com o chão passou a produzir, em mim, uma estranha sensação de despertencimento.

E foi esta a desculpa final que encontrei para justificar minha decisão: voltar a sentir as reverberações de Pachamama, como quando eu era criança e andava perlaí, despreocupado da vida, descalço e sem camisa. Queria restabelecer meu ritmo emocional, de preferência, em consonância com o tempo que o passarinho leva para construir seu ninho. Resgatar, enfim, a harmonia da própria existência.

A casa que eu queria era qualquer uma. Que tivesse telhado e parede; mas até sem porta eu estava aceitando. Quando surgiu uma, despenquei para o Urubu, a procura do "Seu" Alan, o proprietário.

A casinha ficava num terreno cru, sem portão , rodeado pelo Cerrado. Aproximei-me na maciota e, conforme os ensinamentos do Jeca Tatu, bati palmas. “Ô, de casa!..”. Apareceu Alan, um homem franzino, de cabelos grisalhos e aparência e olhar leves. As largas calças brancas e uma camisa de manga comprida de ermitão outorgavam-lhe um ar meditabundo.

- Boa tarde... -, disse ele.
- Boa tarde. Meu nome é João Sassi e moro em Brasília há 30 anos. Sempre vivi no Plano, mas já não pertenço mais àquela realidade. Sei que sua casa está vaga e eu preciso dela.
- Hum... é João, né?, disse o Alan, transformando meu nome num monoxítono tônico, com um inconfundível sotaque goiano.
- É...
- Olha, João, eu não estava pensando em alugá-la... Tem, inclusive, que fazer uma série de reparos, mexer com a fiação elétrica que...
- Eu não preciso de luz -disse, interrompendo-o -, só preciso da casa! (Eu realmente estava disposto a tudo!)
- Olha... Vamos meditar durante a tarde. No final do dia, eu te ligo. – E me deu um carinhoso abraço, daqueles que cheiram a incenso.

Aquilo de falar “vamos meditar”, mexeu comigo: “É aqui mesmo!”, pensei, radiante.


Dois dias depois eu já pertencia à comunidade do Urubu. Poucas horas após minha chegada, eu já tinha sido convidado para almoçar na casa de um vizinho, jantar na de outro, e até mesmo para dormir com uma atiradinha (tipo "recepção de boas-vindas"). Como jacaré no seco anda, recusei algumas ofertas, tendo aceitado a outras.

Uma semana e tudo estava em Paz. A hora de dormir era algo especial; o momento de ficar quietinho, captando os sons da escuridão, escutando a conversa dos bichos.

Meu quarto não tinha porta, e a janela, ainda descortinada, permitia a entrada da luz, ora da Lua, ora das estrelas, criando sempre uma atmosfera relaxante, propensa ao bom repouso. Parecia que eu dormia ao relento.

Naquela noite, após os rituais do banho, apaguei as luzes da casa e afundei minha cabeça nos travesseiros, dando um sorriso para o alto. Minha cama não estava montada, por isso, dormia no chão.

Já deitado, veio a dúvida: “Será que tranquei a porta?”. Resignado, e ainda no escuro, levantei para ir ver. Na sala, próximo à porta da casa, no chão, observei uma grande “mancha escura”. Não sendo do tipo de homem que deixa coisa largada pela casa, estranhei aquela nódoa em meu assoalho de ardósia queimada. Antes de cutucar com os pés, porém, busquei o interruptor... E logo saltei para trás, assustado com a enorme aranha que ali, meditava.

Puxa, vida, a maior aranhona da paróquia! De imediato, criou-se um dilema. O que fazer? Matá-la era a última coisa que passava pela minha cabeça. Afinal, eu não tinha optado pela “vida selvagem” para acabar com esta mesma vida. Eu era o intruso. A aranha só tava dizendo “oi”. Eu deveria procurar entendê-la.

Pensei em abrir a porta, oferecendo-lhe a liberdade, mas o gesto seria dos mais arriscados, pois a abertura da porta iria forçá-la para a porta do meu quarto (que não existia). Se ela entrasse no meu quarto, não creio que fosse possível relaxar tanto ao deitar-me novamente.

Olhei bem para ela e entendi que não havia nada o que ser feito. Eu não estava ali para interferir. Por enquanto, observar era o mais indicado. Convencido de que São Francisco de Assis acabara de se manifestar em meu coração, apaguei a luz, dei-lhe um “boa-noite, Dona Aranha” e fui dormir, sem qualquer receio.

No dia seguinte, a consciência de que o Bem fora realizado me satisfez um bocado!

Alguns dias depois, contudo, nova provação...

Entrando no banheiro, percebi uma nova nódoa em minha visão. Olhei para o lado e vi o que era: uma nova, grande e gorda aranha. Não tive dúvidas. Ignorei-a.

Ela não era como a outra que, a despeito do tamanho, tinha pernas finas e aspecto pouco assustador. Esta, coitada, tinha aquela bundona ameaçadora, além de pernas torneadas e muitos pêlos pelo corpo.

Da segunda vez que passei por ela, senti uma sensação das mais desagradáveis. “João, cê tá sendo cínico, pois a aranha tá te fazendo mal e você fica aí, tirando uma de haribô”. Aquilo merecia uma atitude mais enérgica e pragmática. A não ser que eu quisesse tomar banho com uma peçonhenta espectadora a um metro do meu bumbunzinho (onde só mamãe passa talquinho).

Olhei para ela e estabeleci as condições. Postando-me a poucos centímetros dela, fechei os olhos e telepatiquei: “Aranha, você não é bem-vinda aqui. Espero que você entenda o que estou lhe transmitindo. Vou contar, mentalmente, até 60, e quando eu abrir os olhos, não quero mais vê-la aí, ok?”

Foram os 60 segundos mais longos da minha vida! Eu sabia que não podia abrir os olhos, pois o entendimento da minha mensagem dependeria da minha capacidade de concentração. Se eu abrisse os olhos ou me afastasse, perderia autoridade moral sobre a danada e nada poderia fazer para resolver a questão.

Por 60 segundos, tentei, o máximo que pude, comunicar-me com ela, dizendo que seguisse seu rumo, buscando novos horizontes, pois ali, futuro não havia. Então, abri os olhos...

...E lá estava a feiosa, imóvel, fingindo-se de "surda", sem mover um “músculo” sequer... Simplesmente, aviltante!

Saquei a alpercata dos pés, e tal qual um shao-lin inspirado, apliquei-lhe um golpe-relâmpago, potente e certeiro, fazendo com que minha amiga simplesmente explodisse em meleca, espalhando patinhas cabeludas por todo o azulejo. “Eu avisei...".

Nem por um instante, senti-me arrependido, muito ao contrário. Mais uma vez, o Bem fora feito, e mais uma vez, minha consciência estava tranqüila.

As aranhas, penso eu, deveriam também preocupar-se em entender essa nossa natureza, tão humana...

12 comentários:

Moema Brasil disse...

João, excelente!! Esse texto é mto sua cara!! Mais vc impossível!! hahahahaha Te amo, sabia?

Thaissa disse...

Pobrezinha da aranha. Achei que no final da história ela passaria a ser uma simples companheira de quarto, ali, quetinha na dela, sem incomodar! Acabou virando geléia de aranha.
Até diria que você me surpreendeu com esse desfexo, mas não posso dizê-lo já que não te conheço! =)

Adorei conhecer a sua casa! Me imaginei dentro dela, completamente! Tenho certeza de como ela é e até posso caminhar por lá!

Marcya disse...

Ô, arainha teimosa!
Bem-feito, pra deixar de se fazer de desentendida, diante da enigmática criatura humana...
Adorei! :o)))

Lívia Vitenti disse...

Olha, se existe natureza humana ou nao, eu realmente nao sei... mas se ela existir, ela vem acompanhada do instinto de sobrevivência. Aí já viu né: você nao é aranhólogo (é antropólico)e nao tinha como saber se a mardita ia te ferrar ou nao. Daí você matou, né, fazer o que?
Bisous d'amour

O Maltrapa disse...

Pô, Brasil, sabia da sua paixão - coisa antiga-, mas AMOR, bêibi?... Ah, se o Maltrapa sabe disso... Hahahahaha! Que bom que você tá curtindo as linhas! Seus pitacos são sempre bem-vindos!

Beijão,

O Maltrapa

O Maltrapa disse...

Cara Thaíssa, há momentos e momentos. A aranha magrela se deu bem porque ficou na dela; já a bunduda, se deu mal exatamente pela mesma razão! Se não compreendemos nossa própria natureza, que obrigação elas teriam?

Acho que, no-fundo-no-fundo, ela morreu porque carecia sobretudo de beleza (que, segundo o poeta, é fundamental...).

Quanto à casa, você poderá se atualizar num próximo texto, pois me mudei para uma outra, com menos aranhas e mais escorpiões...

Grande abraço,

O Maltrapa

O Maltrapa disse...

Marcya, não era teimosa, só feia...

Ps: no final, reli e não gostei do "contraditório". Ficou, pois, tudo como d'antes no Qualtel de Ablantes, hehehe...

beijos...

O Maltrapa disse...

Pois é, Lívia, há, como se sabe, aranhas do Bem e aranhas do Mal...

Quanto ao instinto, o dela falhou. Talvez porque a prima dela, com quem interagi na outra noite, tenha lhe dito que eu era da Paz, que não era como os "outros homens"... Vai saber!

Beijo grande,

O Maltrapa

Anônimo disse...

Eu Adorei! Adoro o jeito como você escreve...
Até comentando os comentários você "È D++++"...
"...morreu porque carecia sobretudo de beleza..."
(kaakakakaaaaarsssssskkk)
Pois, essa é a dura realidade...O mundo é mais complacente com a formosura. Sorte dos humanos, a beleza hoje é vendida à prestação.
Beijo
Ass: Anônima, Enigmática, Dependente te Ler e sem coração
Ah! O cachorro melhorou??

O Maltrapa disse...

Cara Anônima, aparências enganam, mas, prestações à parte, nada se compara à sensibilidade ou à inteligência que encontramos aqui e acolá.

Trate, inclusive, de encontrar seu coração, pois sem ele, todo o mais é em vão...

Beijão,

O Maltrapa

Anônimo disse...

Nossa! Sinto Muito! Não tive intuito de desprezar valores tão importantes quanto a inteligência e a sensibilidade...
Desculpa!
Boa sorte!

O Maltrapa disse...

Não há porquê desculpar-se, ora bolas! Apenas complementei seu raciocínio sobre a beleza (com o qual, concordo). Não achei que você tenha desprezado qualquer valor. Talvez eu é que tenha me expressado mal...

beijão

O Maltrapa