quinta-feira, 16 de julho de 2009

De Crenças e Traições, Descrenças e Enganações

. En el detalle de la foto, un brasileño lleno de sonrisas...

Dentre as angústias que carrego, as maiores, certamente, dizem respeito ao engano.

O homem de caráter perdoa até a mulher que um dia o traiu, mas jamais perdoará o amigo que outrora o enganou. Conheço quem já traiu por amor, mas nunca quem enganou sem má fé.

Já fui traído, e perdoei. Já fui enganado, mas nunca consegui sublimar...

Era o dia 16 de julho de 2001. Eu estava em Cuba por conta de um taller de periodismo, para o qual havia sido convidado a participar junto a coleguinhas jornalistas de toda latinoamérica. Estava lá já há mais de um mês, no que caminhava por Havana com desenvoltura e altivez.

Hospedaram-me na Escuela Del Partido Comunista Ñico Lopez e, como hóspede, estava sujeito ao mesmo regime e regras impostos aos integrantes do futuro quadro de gestores do Partido (e da própria Ilha, por supuesto): pouca comida, pouca água e pouco luxo. Muito estudo, muita prática desportiva e muito estímulo à consciência.

Diferentemente dos turistas, eu só me alimentava em restaurantes “para cubanos”. E exatamente como os turistas, enchia a cara do delicioso rum “dos cubanos”...

Havia estado próximo a Fidel Castro em três oportunidades. Havia apertado sua mão, tirado fotos e escutado sua voz. E estava encantado por ele.

Havia também escutado muita coisa sobre a Independência Cubana, capitaneada por Martí, bem como sobre a Revolução, liderada por Castro, El Che e Camilo Cienfuegos. Estava embevecido pela história cubana.

Perdidos em devaneios revolucionários, lá ia, Habana afuera, interrogando transeuntes e contando-lhes as maravilhas de se viver numa sociedade pouco gananciosa. Não demonstravam receio, como se minha presença já lhes parecesse familiar. Por isso, falavam abertamente sobre o processo político cubano. Por saber que aquilo era uma concessão feita a poucos, sentia-me ainda mais pertencente a que fosse tudo aquilo - ainda que não soubesse exatamente o que aquilo tudo fosse. E costumava referendar os resultados da Revolução enaltecendo a sensibilidade e o sentimento, tão característicos à população dali, em contraposição ao materialismo e à frivolidade das pátrias capitalistas: “Aqui, ninguém espera que o outro tenha o bolso cheio de dinheiro, mas a cabeça cheia de idéias e o coração cheio de amor”, é o que dizia aos contra-revolucionários de plantão.

Voltando ao 16 de julho, lá estava eu, contornando a tarde azulada, rente às muralhas do Malecón, quando fui abordado por um entusiasmado rapaz. Perguntou-me de onde era, e tão logo eu disse “Brasil”, seus olhos se arregalaram, no que, sentando-se sobre a mureta, disse que era uma coincidência incrível, pois era para lá que ele estaria seguindo, dali a 15 dias.

Ele e um grupo de percussionistas seguiriam para “San Pablo” e Salvador, para um pequeno circuit de shows. “Como turista, hay que tener um mapa!”, inquiriu ele. E logo mostrei-lhe o meu. Demonstrando grande interesse por tudo o que eu dizia, o rapaz marcou um “X” numa rua qualquer, dizendo que, àquela mesma noite, estaria se apresentado ali, com outros músicos. “Te gusta la salsa? Tu és mi invitado, hermano!”, e disse que bastaria dizer meu nome ao segurança para ter acesso ao local.

Toda aquela dinâmica ia me envolvendo, deixando pouco espaço para o improviso; meu maior trunfo. Ele falava da música e dos brasileiros com super entusiasmo, como se a turnê dele fosse representar a etapa final da débâcle do Império! Ora me sentia homenageado, ora bobo.

Foi nesse instante, quando bobo era, que ele simplesmente me informou que eu teria de ajudá-lo. Que tinha mulher e filhos, e que la leche doada pelo gobierno ya era! E emendou: “Quanto você tem aí, na carteira?”. Eu, que me alimentava diariamente de quimeras humanistas, tinha diante de mim um legítimo farsante, e por ele era chantageado. A situação me era de um incômodo atroz, mas eu não encontrava meios para por fim àquilo!

Negar-lhe ajuda seria o mesmo que declarar que o ser humano é ganancioso, aproveitador, oportunista!... Exatamente o que ele era; exatamente o que eu não queria admitir que ele fosse.

Por outro lado, acreditar em seu engodo seria legitimar o hombre nuevo, que é solidário e desprendido.

Abri a carteira. Por sorte, somente 4 dólares. Entreguei o dinheiro, mas fiz questão de ir com ele à la vendita, onde logo entramos numa fila. A esta altura, mi compadre já não demonstrava tanta desenvoltura, senão preocupação. E cada vez mais, minha indignação resplandecia em meu rosto, fazendo com que meu semblante se fechasse e eu me aproximasse dele, quase o intimidando.

- Oigame, chico, que todavia tengo que coger uma platita a más, antes que me compre la leche...” -, e afastando-se, ainda gritou, “Esta noche!... No te olvides”, sumindo na próxima esquina.

Eu sabia que fora enganado, e ainda assim, não consegui evitar. Por horas, dias, anos, tenho repassado a cena, remontando o diálogo, compreendendo as nuances e armadilhas que minha malícia não evitou. Cair no conto do malandro cubano é algo que me marcou muito... Eram só 4 dólares!... Mas era também meu orgulho... E que se transformou numa lembrança que me traz tormento e arrependimento.

Oito anos se passaram, completados hoje. E somente aqui, agora, redigindo este texto, na labuta diária, nesse precioso exercício literário, consegui, enfim, entender o porquê da minha complacência. E compreendi que eu não poderia realmente ter feito nada diferente.

O trunfo dele? Minha crença na humanidade.

11 comentários:

Amarilis disse...

Oi João, gostei muito desse post (e também dos outros)! Ser enganado, hora ou outra, é inevitável, diga-se bem, até em Cuba... Muitas vezes a gente é sem se dar conta. Aí, pelo menos, não dói.

Mas ser enganado sabendo, ou se deixar enganar, também pode ser um trunfo. Conhecer melhor a alma humana, cheia de defeitos e vícios, mas também de carências e desejos. E ainda mais pela bagatela de 4 dinheiros...

Se servir de consolo, já caí em conto de malandro-pé-de-chulé que saquei na hora e em novela de malandro-profissa que levei uns 80 capítulos pra sacar. ;-)

Beijo.

iLUDindo disse...

Tentativa boa essa sua de mudar o reflexo da característica dele.
Usou de atitudes dolorosamente calculadas para dar-lhe a sensação de tudo aquilo que não era ele, na esperança de que um dia ele fosse.
Podemos sim dizer aos de má fé: Sejam bem vindos irmanitos !!
Agindo assim, contiuamos a ser o oposto deles e ainda existe a possibilidade, uma sensação, uma esperança de que retorne a sua pedra bruta, àquela que ainda não foi lapidada pela maldade humana.

Ilíada disse...

“Mas é preciso ter manha
É preciso ter graça
É preciso ter sonho sempre
Quem traz na pele essa marca
Possui a estranha mania
De ter fé na vida ...”
Milton Nascimento já dizia isso a muito tempo atrás.

Por outro lado, não tão gênio, porém, igualmente sábio, Vicente Matheus me vinha com: "quem tá na chuva é para se queimar".

Entendo que a decepção, a desilusão e, porque não dizer, a desesperança, fazem parte desse processo divino do viver. Como os sambistas já cantavam: não podemos ter vergonha de ser felizes, de acreditar, de ter esperança. Sim, esperança! Cuba, Fidel, Ernesto são símbolos, ainda que distorcidos, da grande esperança de um povo, sonhador de dias mais justos, dias com mais amor, dias com mais compreensão.

Hoje, veja só, a Globo nos lembrou uma coisa boa: 91 anos de Nelson Mandela. Se alguns símbolos se distorcem, nos enganam, perdem a ternura e endurecem, vamos buscar nos lembrar dos outros e nos inspirarmos.

(acho que já te disse antes) Realmente prefiro continuar acreditando em Papai Noel, Coelhinho da Páscoa e em caras como Mandela e Mahatma Gandhi, a perder a esperança em uma Cuba que já foi berço de tantos sonhos de rapazes latino americanos - como tu, como outros. Endurecer é fácil companheiro, difícil é não perder La ternura!

Bjim
Flavinha

iLUDindo disse...

Bjim Flavinhaaaaaaaaaaaaa !!!
Vamos ser amigas para sempre???
Ririririrriri...

O Maltrapa disse...

Amarilis, acho que você captou bem a essência deste último texto. O mais importante, de fato, foi aquilo que a experiência me proporcionou. Passei um bom tempo até compreender isso...

Seus comentários são sempre bem bem vindos!

Beijão,

O Maltrapa

O Maltrapa disse...

Em outras palavras, Ludmila, tome um banho de pós-modernismo no Córguin do Urubu e deixe as tristezas para trás, hahahaha!!!

Ah, bruta pedra humana!...

Beijo grande,

O Maltrapa

O Maltrapa disse...

De pleno acordo com suas impressões Dona Ilíada (o que é raro, diga-se). Somente acrescentaria um pormenor: não há qualquer perda de esperança em relação a Cuba. A Revolução não foi um projeto pronto e acabado, mas uma tentativa de transformação social que, a despeito dos muitos equívocos, propiciou o estabelecimento novos valores morais e sociais entre aqueles que dela participam. Talvez, se houvesse mais ternura, seria, hoje, o grande exemplo a ser seguido.

Belo comentário, o seu...

Beijo!

O Maltrapa

Ilíada disse...

hihihi brigadinha Jony Bravo... tô tentando aprender alguma coisa com vossa senhoria: sabedor "escrivinhador" e "juntador" das palavras. Como é que Ela diz mesmo: arquiteto das palavras?!

iLUDindo, seja muito bem vinda ao lado de cá, flor! Amigos?! É comigo mesmo. Tamos aí, é só chamar. Apesar de intrigada pelos pessimistas, gosto mesmo é dos(a) otimistas!

Bjim.
Flavinha

Ilíada disse...

ah, antes que vc acabe com a minha raça, a referência "Jony Bravo" não tem nada a ver com o cartoon! Nada disso! Nunca, nem por um instante.

Lívia Vitenti disse...

Eu achava que o Canada era um pais justo (ha?) onde todas as pessoas tinham acesso à educaçao, moradia, emprego, saude, etc. Até que um dia uma russa (russa gente), me pede 20 dólares emprestados porque ela tinha torcido o pé e nao podia pegar ônibus. Eu muito gentilmente dei a unica nora de vinte que eu tinha (eu nao tava trabalhando e o dinheiro tava curto) e peguei o seu celular para cobrar mais tarde meu tao suado dinheiro. Pois bem, era golpe! Sim, e ela era russa, gente, RUSSA!
Ai, ai, por isso que eu gosto de você Juan corazon, crees todavia en la humanidad! Aguante Cuba y viva la revolucion!

O Maltrapa disse...

Russos, cubanos... Hum... A grande conquista da nossa geração foi ter chegado ao final do séc XX em condições de sermos mais imparciais nas análises das revoluções humanistas, reconhecendo retrocessos, mas enaltecendo importantes conquistas.

Um beijo,

O Maltrapa