quarta-feira, 20 de maio de 2009

O Nó da Gravata


Aos trinta e três anos não sou pai de nenhuma criatura viva. É sonho antigo.

Se é bom ou ruim, isso não sei, mas desconfio que a missão seja mais ou menos como aquela estória de se enfiar o dedo na tomada: há de se passar pela experiência para saber do que se trata.

Na manhã de hoje, ainda que por breves instantes, senti a deliciosa sensação de ser pai!

De banho tomado e camisa social recém passada, postei-me diante do espelho para iniciar o ritual da colocação da gravata - a indumentária de maior status social no ocidente.

Apesar de gostar muito de nós mais fofinhos e avolumados, devo admitir que nunca fui bom nisso. Desconfio que por culpa da maioria de minhas antigas gravatas, que de tão raquíticas –tísicas por assim dizer-, não davam nem pra saída... Bem diferentes das minhas novas gravatas, mais caras, gordinhas e bem nutridas.

A estrela da companhia (uma italiana, lilás), aliás, conserva até hoje a mesma forma do seu debut. É que o vendedor barrigudinho que ma vendeu caprichou tanto no nó (estilo “Windsor”) que não tive coragem de desfazê-lo. Só não o considero perfeito porque, ao fim e ao cabo, a ponta da gravata não alcança a fivela do meu cinto, dificultando minha caracterização de homem moderno e antenado. Registre-se que com o paletó devidamente abotoado, ele (o nó) merece todos os louros.

Para combinar com a camisa “azul-pêéssedêbê”, escolhi uma gravata listrada, em azul-escuro e prata, que achei, meio empoeirada, na gaveta da minha mesa, no gabinete onde trabalho. Aparenta ter uns 4 ou 5 anos de uso contínuo, e apesar de um pouco puída, é da nova geração, portanto, mais bem nutrida e sorridente. E é de seda!

Levantei a gola da camisa e coloquei a gravata ao redor do pescoço. Essa é uma parte complicada, a da medição. Não sei se por desatenção ou dislexia, o fato é que nunca lembro exatamente onde deve estar a ponta da danada no início da operação; sei apenas que é “perto do saco”.

Por mais almofadinha que possa parecer, esse ritual deve ser executado de maneira altiva e altaneira, procurando entrelaçar a gravata carinhosamente, sem amarrotá-la por entre o nó feito. Esticar o pescoço, elevar o queixo e olhar-se de soslaio é um movimento clássico, capaz de produzir em seu praticante uma verdadeira sensação de superioridade (configurando um momento que deve ser dedicado à auto-reverência).

Note que é preciso estar concatenado á idéia do legado eurocêntrico, que nos moldou à imagem de lordes, cuja essência expressa a vitória da forma em detrimento do conteúdo. Do contrário, se porventura impregnado por uma ideologia humanista ou teorias esquerdistas libertárias, evapora-se o glamour, restando apenas a sensação de um auto enforcamento.

Em meio ao meu narcisismo, com o canto de olho, percebi, rente à porta, a presença de mais alguém que, de tão atenta, tornara-se partícipe do processo. Era Luíse (ou Lulu*) que, com seus 4 aninhos e olhinhos pretos de bola-de-gude, quase não percebia o mundo à sua volta, absorvida que estava pela delicadeza do ritual.

Quando ficamos assim, profundamente compenetrados, fazemos expressões únicas, as quais não se pode repetir, voluntariamente, num outro momento qualquer. É como no sexo: somente nosso(a) parceiro(a) vê nossas feições mais íntimas e reveladoras; nós, nunca.

Lulu estava imóvel, numa flagrante curiosidade infantil. Olhava para as minhas mãos, buscando entender o que elas faziam, e o porquê de tantas voltas, idas e vindas. E notei que eu mesmo, quase que por empatia, estava também hipnotizado.

Ela estava definitivamente olhando para algo que não fazia parte do seu dia a dia, algo agradável. E eu, aprendendo com ela a aprender o mundo, a ver o novo. E, lentamente, o nó ia tomando sua forma definitiva, enquanto eu, num regozijo paternal, ia me esforçando por fazê-lo, também assim, lentamente...


*Lulu é filha de Ana Paula, moça da região do Córrego do Urubu, de 25 anos, que vive numa casinha sem energia elétrica com sua mãe e quatro filhos, e faz, eventualmente, uma faxina na minha casa.








5 comentários:

Márcio disse...

Malgrado os arroubos neoparnasianos, está massa seu texto, Lima Santos! Se bem que essa história de gravata achada na gaveta está cheirando a dica para presente de aniversário ... :-)
Abração!

O Maltrapa disse...

Os arroubos encontrarão seu fim, mais hora, menos hora; basta ser como o pastor, e ter paciência... Valeu pelo toque, Contreiras!

Moema Brasil disse...

Bravo!! Bravíssimo!!
Aguardando ansiosa seus próximos "arroubos". Que não tardem a vir!
beijo carinhoso

O Maltrapa disse...

Moema, a compilação de você fez dos meus textos de viagem foram o ponto de partida para este blog. Meu muito obrigado a você!

Beijão

Pollyana Maria disse...

Acho que a cena de um homem deste tamanho parindo um filho na sua frente, ficará para sempre na memória de Lulu ... Parabéns pelo blog, João, seus textos são mesmo gostosos de ler e o "visu tá maior bacana" :) !
Beijo!