terça-feira, 30 de outubro de 2012

O Canto do Passarinho





Se não fosse apresentado por Letícia como sendo seu marido, poderia se desconfiar que Silvestre fosse apenas um dos funcionários daquela aconchegante pousadinha à beira-mar.

Simplório, andava sempre de cabeça baixa, amuado, mesmo passando a impressão de que haveria ali, dentro de seu peito, um passarinho cantador. Como aqueles que costumava capturar nos arredores de Arapiraca, sua cidade-natal, encravada no coração das Alagoas (cujo desenho no mapa, aliás, se parece mesmo com um coração). Sangues-de-bi, papa-capins, galos de campina, extravagantes, rolinhas, craúnas, caboclinhos, manés-magros, canários-da-terra, azulões e sanhaços, mesmo engaiolados, cantavam músicas que lhe propiciavam a sensação de uma liberdade que não encontrava em casa sob o pesado tacão do pai, Seu Silvestre. É bem natural que, por conta daqueles anos, Silvestre, o filho, carregasse agora um pouco de angústia no olhar, e certa tristeza, além de duas gaiolas, ora vazias.

A mulher, paulista desgarrada, há muito fizera do sonho sulista uma realidade; mudar-se do inferno citadino para uma praia do Nordeste, com direito a pousada de frente para o mar. Trabalhava noite e dia, sempre com um cigarro aceso entre os dedos e uma expressão indefinidamente preocupada. Agia de sobressalto, quase assustada.

Conheceram-se em Maceió, quando ela chefiava um bom restaurante. Puderam desfrutar da paixão ao sabor de lagostas e camarões. Silvestre sentia-se bem na capital. Tinha casa, comida, roupa lavada e tempo para cuidar de seus pintassilgos. E fazia Letícia muito feliz na cama. A química vinha funcionando bem, até que o lado empresarial da relação – o dela, óbvio – resolveu apostar no aconchego da tal pousadinha à beira-mar, numa pequena comunidade de pescadores. Foi quando Silvestre deixou de ser namorado e passou a ser pau mandado. A apresentação “meu marido” era meramente uma formalidade – e a única distinção entre ele e os demais empregados do estabelecimento.

Foi nestas condições de desalento que Silvestre teve contato com Faustino Dantas, um escritor desconhecido, já de idade, que acabara de se hospedar para descansar e, quem sabe, buscar inspiração para escrever um bom livro.

Logo que viu o velho instalar uma mesinha na varanda em frente ao quarto, e sobre ela uma antiga máquina de escrever, Silvestre se tomou de encantamento. Durante toda a infância sonhara aprender a ler e escrever para poder ao menos “triscar” num modelo semelhante àquele, que havia em sua casa, comprado de segunda mão por Seu Silvestre, quem, por ser também analfabeto, não sabia usá-la e tampouco permitia aos filhos fazê-lo. Silvam, o irmão mais novo, um dia se meteu a porreta e desrespeitou a norma; tomou uma sova tão impiedosa que a dor do pequeno bateu fundo na alma de todos, que jamais ousaram repetir a traquinagem. Para Seu Silvestre a máquina de escrever era um símbolo de importância - um objeto para se ostentar -, e não uma máquina de escrever. Também por isso, Silvestre se tornou, quando adulto, um semi-analfabeto, um quase-matuto. É do tipo já crescido que nunca tinha ouvido falar em Machado de Assis... Até conhecer Faustino.


Que, por sua vez, passava o dia a escrever, à exceção de breves momentos em que se metia no quarto para fumar maconha – o que produzia grandes barrufos de fumaça, basculante afora – para depois, mais arejado, voltar à labuta. Silvestre aproveitava esses instantes para se aproximar e ouvir do “sábio” suas idéias. Achava-as por demais interessantes.

O velho dizia sentir saudade do tempo em que era moço, quando “o ritmo da vida era mais parecido com o ritmo da gente”. Silvestre, que da infância só gostava do canto dos passarinhos, concordava com o escritor:

   - Hoje a gente tudo só sabe corrê, né, Seu Faustino? – no que prosseguia o pseudo-filósofo:
   - Corre-se muito, mas sem saber por que...

Dava-se um momento de silêncio, quando se podia perceber a aflição na alma de Silvestre. Queria dizer algo, mas não sabia o que. E o romancista voltava às teclas.

Mesmo curtos, os diálogos iam despertando alguma coisa diferente em Silvestre. Um dia, apareceu e, inadvertidamente, pediu a Faustino “um fininho”. Ao receber mais que isso das mãos do velho maconheiro, pediu-lhe também que não contasse nada à Letícia: - “Ela não pode nem sonhar!”.

Por cinco dias, Silvestre desapareceu da vista dos hóspedes. O próprio Faustino o vira apenas uma vez, certa noite, em meio à escuridão mansa das pequenas vilas praianas. Parecia assustado, tendo apenas acenado com a cabeça e sumido em meio ao sombreado dos coqueirais.

Na noite seguinte resolveu dar as caras.

Faustino escrevia quando Silvestre surgiu. Trazia um semblante tenso, embora tentasse forjar um sorriso. Normalmente Faustino dava atenção a ele quando não estava trabalhando; desta feita, porém, não é o que ocorria. Mesmo assim, Silvestre permaneceu parado, aguardando a anuência do escritor que, por fim, cessou o movimento das mãos e levantou a vista:

   - O que se passa, Silvestre? – perguntou.

Após morder um pouco o dedão da mão direita, respondeu:

   - A maconha me deixa anti-social.
   - Ah... Por isso estava sumido? Preferiu se enrustir...
   - É... Foi isso. Mas, na verdade, é porque eu não tô feliz.
   - (...) Como assim?
   - Casar e trabalhar juntos... Não dá certo! E essa mulher não para de me dar ordem! Não consigo nem ver o mar, diacho!  Parece meu pai!...

    De repente e inesperadamente, Faustino era agora confidente de um homem que, aliviado por encontrá-lo, dava conta de sua vida, de sua intimidade e de suas angústias a um total desconhecido. Constrangido, o escritor olhava para um lado e para o outro, a ver se alguém, especialmente Letícia, os poderia escutar, apesar do chuá-chuá das ondas do mar. É que as águas marítimas são traiçoeiras: assim como podem abafar o falar com o vento, podem levar longe nosso argumento. Interrompeu as lamúrias do pobre capacho com um conselho:

   - Sonhar o sonho de sua companheira pode ser nobre, mas se tornará angustiante caso este não seja também o seu sonho.

O olhar de Silvestre brilhou como a superfície de um açude após o fim da estiagem, e seu semblante, enfim, tomou feições menos melancólicas. Foi quando apareceu Tommy, um senhor americano hospedado no quarto ao lado, que arranhava o português. Com as bochechas vermelhíssimas e completamente alheio ao momento, disse que tinha uma ótima piada para contar ao escritor. Este, já destituído de sua condição, não teve como deixar de atender ao pedido do gringo.

Forçado a rir ao menos um pouquinho por conta da falta de graça da piada, Faustino já se despedia de ambos quando Silvestre pediu para entrar também no samba. E mandou outra que de tão ruim, não se podia sequer compreender. Mas a poderosa gargalhada de Tommy forçava os envolvidos a repetir o ritual de cumplicidade, dando risadas e se entreolhando, como quem diz “puxa, essa foi demais!”.

Então, num ato de pura vilania, aparece Letícia, dando ordens a Silvestre para que fosse fazer qualquer merda, menos estar ali, de desfrute com os hóspedes.

Empolgado com a consciência de sua própria condição, e firme no novo propósito de respeitar o próprio sonho, Silvestre comenta:

   - Sim, já vou. Deixa só eu contar essa piad...
   - É agora.
   - Já entendi, vou já; é só contar...
   - Tem que trabalhar, rapaz! – exclamou ela, já chutando o balde, deixando o local.

Como é comum aos machos quando uma mulher dá faniquito, ignoraram a situação e voltaram às gargalhadas. Mas Letícia não estava para levar desaforos. Em menos de um minuto já estava de volta, cigarrinho nervoso à mão:

   - Silvestre!...

São horas assim que determinam se o homem vai ser homem ou vai se conformar em ser eternamente um menino. Como quem abre uma gaiola para libertar uma passarada, Silvestre se voltou para a mulher como se fosse ele o “dono da terra”. E em tom próprio do coronelato da região, emendou, ameaçadoramente:
  - Não está vendo que estou conversando com meus amigos, Letícia? Entendeu ou quer que eu lhe faça entender?!

No dia seguinte, apenas os empregados trabalharam. Após passarem o dia inteiro trancafiados, Silvestre e Letícia foram vistos, já com o sol se pondo lá no fim do mar, numa bem servida mesa de mariscos e crustáceos, com direito a taça de espumante, camisa desabotoada até o peito e um grande sorriso no rosto...

Passarinho canta mais bonito quando canta fora da gaiola.


foto de marcya reis



2 comentários:

Anônimo disse...

Como sempre adorei. Fica aquele limiar realidade e imaginação que é a sua cara.

O final é cinematográfico. Deu pra sentir a cena, os frutos do mar e a felicidade dos dois...

Eliana

LudiLu disse...

Chega uma hora que o Sr. Chega, chega atrasado... mas ainda em tempo!!!