segunda-feira, 11 de julho de 2011

A Filha do Hippie




Já há muitos anos casada, Tereza enveredara pela área profissional com a qual sonhara, e atingira o meio-tempo de sua idade feliz e ainda estimulada pela beleza da vida. Aquilo que era simples; isto a encantava - uma caliandra; um sabiá; um pôr-do-sol...

Criticando sempre a desastrosa evolução da sociedade, mas mostrando-se, sobretudo, otimista em relação ao futuro da humanidade, era no contato com a natureza que ela construía sua realidade:

- “Ser filha de hippie é isso aí!”- bradava, demonstrando satisfação pelo equilíbrio existencial até então alcançado. Bastava uma conversa com Santa Maria – uma “luz” – e o esplendor da vida natural que cercava sua casinha rural - feita com o amor e o suor do próprio marido -, para que ela se sentisse bem contente; o que incluía também sua filha, Luana.

Para Tereza, prazer era vê-la solta pelos arredores, em meio às plantinhas bem regadas e domesticadas do jardim, e também muito à vontade, caminhando pelas trilhas ressecadas do Cerrado ou mergulhando pelas águas barrentas de um córrego sombreado.

Muito desenvolta no trato com a natureza, a pequenina sempre gostara de ser como a mãe, imitando-a no pensar e também no gestual, restando a esta se deliciar ao ver florescer na doce Luana a filosofia de vida que sempre considerou ideal.

Certa vez, numa fria noite de Inverno, armou-se uma fogueira um tanto quanto distante de casa. Luana sentiu sede e perguntou à mãe se podia, ela mesma, buscar água. A ela, não parecia temeroso ver sua filha, uma criança de somente três anos de idade, simplesmente desaparecer em meio ao breu, se deslocando pela noite com a naturalidade de uma citadina que vai à esquina. E voltar com um sorriso no rosto, sem qualquer medo ou receio do desconhecido. Na mente não contaminada daquela menina, não existia bicho-papão.

A vida no mato e as constantes viagens que o marido era obrigado a fazer parecem ter mesmo propiciado o fortalecimento da sintonia e da cumplicidade entre Tereza e Luana, posto que, pelo relativo isolamento, não lhes sobrasse em quem mais confiar. E muito tempo passavam juntas, mãe e filha, atravessando as tardes como a brisa leve da infância.

Mas mesmo aparentemente distante do mundo real, é certo que Luana freqüentava a escola, onde desfrutava, por algumas horas, do convívio com um universo tão distinto quanto curioso em relação ao seu cotidiano doméstico. Acostumada a tomar suco natural, a comer bolo de aveia e mel e a almoçar arroz integral, a menina fazia cara feia para o guaraná que os colegas tomavam. Experimentava os salgadinhos, mas dizia que fazia mal: “Minha mãe disse que é feito de isopor!”, justificava.

Ao fim do ano letivo, os professores promoveram uma manhã de confraternização, para a qual os pais foram todos convidados. Era, para Tereza, uma situação que lhe trazia algum incômodo, afinal, ela não respeitava o padrão estético ou mesmo existencial proposto pela sociedade que se vê na TV.

Tereza não costumava usar maquiagem, roupas da moda ou penduricalhos que brilham, mas somente uma pulseira artesanal feita de sementes. Era notório o contraste entre seu olhar e o olhar das mães presentes ao pátio do colégio. Seus valores não eram tão superficiais quanto os demais, e talvez por isso não pudessem ser facilmente notados.

O carro sujo de poeira, a sandália de dedo, feita de couro ou o cabelo preso por uma simples liga elástica - sem escova, luzes ou pintura - eram suficientes para deixar bem claro de que valores tratava o coração de Tereza.

Num dado momento, a turma de Luana foi reunida por Tia Cecília para um “pique-pega no céu”, no qual umas poucas crianças fariam o papel de “anjo salvador”, tendo “poderes especiais” para salvar os amiguinhos.

Todos os pais se acomodaram e se aboletaram com suas câmeras de celular ligadas, na esperança de ver e incentivar suas crias. Tia Cecília então anunciou que escolheria os anjos fazendo uma pergunta simples; e indagou às mais de 40 crianças, obedientemente sentadas e ansiosas:

- “Quem aqui comeu banana no café-da-manhã?!!!...”, disse, logo olhando para todas elas com cara de grande interesse e expectativa.

As crianças se entreolharam... Os pais fizeram o mesmo. Tereza, conjecturou consigo, fechou os olhos, hesitou um pouco, certificou-se, e quando os abriu, confiante, viu Luana, em meio a todos, com o bracinho levantado – ela era a única; ninguém mais.

Enquanto Luana era convocada por uma cordata Tia Cecília a assumir seu posto angelical, Tereza ia ao Céu, em paz com sua consciência de boa mãe.

Em pé, sozinha no meio do pátio, a pequena Luana, alheia ao regozijo da mãe, perguntava insistentemente à Tia Cecília: “Posso voltar pro meu lugar; posso?... Posso, tia?... Eu só comi uma banana...”.

Foto: 365 Fotografias, por Marcya Reis


3 comentários:

ludinomato disse...

"Em pé, sozinha no meio do pátio, a pequena Luana, alheia ao regozijo da mãe, perguntava insistentemente à Tia Cecília: “Posso voltar pro meu lugar; posso?... Posso, tia?... Eu só comi uma banana...”." kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk.... MUITO BOA ESSA MÃE, ESSA SUPER MENININNHA, ESSA TURMINHA DO MATO.
É nisso que eu acredito!

Ludi só se for simles!

Márcio disse...

A filha do hippie original já leu?

eliana lucena disse...

Adorei sua volta. Tava sempre procurando e nada.......Perfeita a filha de hippie, nessa convivência complicada. Tomara que ela consiga consolidar instrumentos para enfrentar esse mundão cuel bj