sábado, 6 de fevereiro de 2010

A Ilha Apodrecida


Brasília tornou-se infelicidade.

Fui morar no mato porque queria ter vida à minha volta. Ver o passarinho fazer um ninho, pisar no chão de terra, ver a nuvem, o vento, o tempo; a Mãe Natureza, sabe?... Sentia a falta do seu carinho.

Um amigo que me vendia pães de maçã saborosamente integrais foi quem me deu a dica: “Lá, onde eu moro, é tudo assim, desse jeito aí que você falou”.

A primeira tentativa foi logo feita. Apareci bonito, ao natural, com barba e cabelo. E fui logo recebido pelo homem simples do local. Gostei da modéstia e da casinha recém reformada. Confirmei interesse e levei parentes para gostarem também.

Trato feito, ficou tudo acertado, firmado na oralidade. Dali a alguns dias, a mudança seria levada a cabo. Mas logo veio o desencanto: a casinha que tanto queria fora querida por outros também. Trato desfeito. Quebra de confiança. Poxa, logo com um homem da roça – de enxada na mão e tudo mais... Mas, quem desconfiaria?

Logo entendi que minha conversa tinha culpa. Quem manda falar para homem pobre que o dinheiro não vale nada? Que o valor maior está nos olhos, ou escondido, dentro do coração?

Pois foi o que fiz, cheio de ladainha e poesia, quis permear a prosa de valores verdadeiros, mas não financeiros. E as portas daquela casinha se fecharam.

Mas o tempo, o vento levou, e fez-se a próxima temporada; e mais uma empreitada.

Soube de nova casinha, a uma outra colada.

Bati palmas. Saiu de lá um sujeito franzino e dentuço, com cara de espiritualidade e roupas brancas, me lembrando a eternidade. Perguntou o meu nome e disse que ia meditar antes de me aceitar. Ao fim do dia, me ligou: "Gostei de você. Acho que vamos nos entender muito bem!”. Tornamo-nos vizinhos e grandes amigos.

Foi um tempo bom aquele... No início, quando tudo é novidade, a vida ganha contornos coloridos; até água fria e falta de energia são motivos de tranquilidade. De lá, o céu era mais bonito que o da cidade, e sempre tinha estrelas.

Enquanto isso, eu fazia tudo o que queria. O que eu mais gostava era de pular da cama e, ainda nu, ir direto ao jardim para fazer o xixi da manhã. Bocejar para as plantas é melhor do que para azulejo. De um lado, via mangas, goiabas e amoras recém-nascidas. Abaixo, formigas levando folhagem ao formigueiro. E ao longe, bem longe, os parcos sons de uma cidade da qual eu já não gostava tanto.

Aranha tinha. Barata não. Prefiro cinco aranhas a uma única barata.

E enquanto eu ia aprendendo a passar o tempo sem muito fazer, conversava com quem aparecesse. Gente diferente e sem preconceito. Gente pobre, gente simples e, como eu, cheia de defeitos. Eu, agora, tinha vizinhos à vontade; daqueles que dão “bom dia” por gosto, e não por ofício ou vício. Claro, faziam picuinha como a gente da cidade, embora fossem bem mais, gente de verdade.

Eu agora tinha janelas e portas abertas para a vida. Para as meninas que brincavam no gramado em frente, e que sempre invadiam minha casa, sorridentes. Para o vizinho que meditava. Para o amigo novo que chegava e logo se acomodava.

Foi realmente um tempo bom, um tempo novo. Que me estimula a olhar para frente, talvez olhar diferente... Já não posso mais afirmar o amor que um dia pensei sentir pela minha cidade.

Viver numa grande caixa, cheinha de gente, nunca me fez muita alegria. Invejava aqueles que, ainda que mais pobres, tinham uma turma, uma rua, uma comunidade a qual pertenciam. Eu nunca pertenci a Brasília; a uma superquadra – ainda que por ali houvesse toda a vida vivido. Mais de 30 anos em apartamentos de alto padrão não me davam alento, só solidão.

Acho que ela se tornou paradigma anticomunitário. Um reflexo espúrio do excremento mesquinho, pérfido e pútrido das autoridades que aqui cagam, cheias de cinismo e imunidade. Uma cidade que não se mexe e não se envergonha de nada. Que perde espaço para os muros e os condomínios feitos em dissonância; à perfeição dos anseios de cada individualidade.

Já não há o sonho candango, que, aliás, é palavra feia. Nunca foi adotada pelas elites que aqui chegaram com tudo já feito... Pelos próprios candangos!

Já não há tantas crianças pela grama. Já não há tantas crianças pelas ruas ou pelas quadras... Onde estão as crianças? Meteram-nas todas em grandes shoppings? Mas tantas assim? Sim, constroem-se mais shoppings e cinemas e casas de jogos e tudo mais o que for possível para tirá-las do convívio simples e real de uma vida comunitária. Dizem pertencer a várias comunidades que – pasmem! – não existem nem no papel, senão em telas – e somente nelas.

Ocupada, desordenada e desencantada. O livre caminhar perdeu rumo. O concreto virou vidro. A espontaneidade perdeu o sentido. A esperança virou desalento, medo, castigo.

E agora, Lúcio? E agora, Oscar? Porventura desconfiariam que o avião iria naufragar?

Pois naufragou a nossa Brasília, tornou-se puramente ilha, Brasólia, inglória.

Antes que derrubem meu mato, boto minha viola no saco e vou-me embora, farto.

...

...

...


FIM


Ps:Se escutarem por aí que foi este Maltrapa quem mexeu seus pauzinhos (modéstia...) para encarcerar nosso Grande Panetoneiro, desconfiem! É pura perseguição política e inveja do membro alheio. Afinal, posso não gostar muito de frutas cítricas, mas adoro infusão de Arruda!

26 comentários:

Amarilis disse...

ô João, que texto triste...

Penso que a vida ganha cor, sempre que a gente faz escolhas. Te deixo com Drummond:

"Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida."

O mundo é grande, João, coragem!

Marcelo Mayer disse...

o olho do amor desconhece armadilhas

Carol Sakurá disse...

Doce texto!
Meu pai trabalhou na construção de Brasília,(ele era bem mais vleho...rs).
Ao ler,a ternura do personagem lembrou-me meu pai.
Estou aqui a divagar..rs
Bjs!

Anônimo disse...

Joao, que coincidencia....Genebra é Brasilia nesse velho continente num pais-prostituta chamado Suiça.
Abraço Paulo

LudiNACABADA disse...

Neste mesmo tempo de naufrágio tambem naufragam milhares de coisas em nós.
Brasília se apronta para receber a criatividade já ""bolada"". Os ""prontos"" para o pronto se adaptam muito bem.
Ainda bem que existe alguns poucos "inacabados"" que insistem em não perder o potencial criativo, insistem em dar vida a sua própria criação, nesta hora penso em salvação.
Seu texto me faz perceber meu cansaço para todas essas formas de comodismo que injetam em nosso cérebro quase que subliminarmente.
Percebo o naufrágio de Brasília, não de camarote, mas com baldinho na mão, jogando água pra fora!
Quero é mesmo ficar inacabada, para ir atrás de mim sempre, sempre, sempre...

O Maltrapa disse...

Amarilis, O mundo é grande; tortos somos nós...

Beijo,

O Maltrapa

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É verdade, Marcelo! Aliás, a intenet também esconde muitas armadilhas...

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Pois é, Carol, enquanto "seu velho" se dedicou à construção de um sonho brasileiro, a dura realidade de hoje nos mostra outros tantos "velhos" se esforçando para a descontrução desse mesmo sonho, e de todo brasileiro.

Divague, propague, expanda!

Beijo,

O Maltrapa

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Grande Paulo!!!

Adorei sua frase: bem feita, concisa e cheia de requinte! Ótima a comparação entre as duas cidades! Brasília também é primeiro mundo em se tratando de bordéis, meu caro, pois aqui, o que não falta é putaria (na pior acepção do termo, diga-se).

Boas energias por entre suas rivieras, bavieras e biosferas suíças.

Forte abraço,

O Maltrapa

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Fecho contigo, LudINACABADA!

Foi o velho Sócrates quem primeiro se regozijou por ser um eterno inacabado, nunca se deixando completar por inteiro por aparentes verdades ou inexoráveis destinos, mas sempre aberto ao novo, ao doce, ao certo (contanto que duvidoso!).

Inacabemo-nos por completo!

Beijo grande,

O Maltrapa
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Ps: FORA, ARRUDA e seus párias!!!

Roseane z disse...

Bem vindo ás fileiras de Brancaleone..."pero sin perder la ternura jamás "!!!!No mundo tem lugar p/ todo mundo...uma hora a gente tromba de frente!bbbjjiinnss.

O Maltrapa disse...

Z, o exército dos puros, justos, belos e esbeltos perseverá! E se a gente não se trombar de frente, pode ser de ladinho (que é bom também), hehehe...

beijo grande,

O Maltrapa

Márcio disse...

Bonita a conexão telúrica com o torrão que ora te abriga, Escriba. Mas, parafraseando esse menino de Santo Amaro, não dá para ver tanto espírito no feto e nenhum no marginal. Independente da condição de imigrante, me é impossível ver apenas o espúrio e o mesquinho na ilha que você chamou de apodrecida. Quanta amargura, hein?! Tudo bem que que ela tenha muitos defeitos, esteja maltratada e seja governada por escrotos. Nem assim, contudo, perde o encanto. Basta reparar nos prédios sem grades (coisa impensável em outras capitais) ou nos eventuais companheiros de caminhadas que não se furtam ao "bom dia", que você acha que só a bugrada dá com gosto. Só dois exemplos singelos, mas há outros tantos.

Agora o outro lado da moeda. O local que você descreve idilicamente esconde também seu lado pérfido, pois não há quem não o tenha. Será que, por exemplo, seu senhorio ocupa legalmente toda a área? Será que paga regularmente todas as taxas devidas? Se ele não paga IPTU, por exemplo, são os moradores da ilha apodrecida que pagam por ele. É justo isso? Nem com a porra!

Cada um elege seu paraíso na terra, o que é ótimo. Mas me espanta seu grau de descrença com a criação de JK, Lúcio Costa e Niemeyer. Ao ver você, nativo da terra, abdicar de zelar por ela, me bate uma estranheza. Algo semelhante ao que sinto quando vejo outros nativos ignorarem solenemente o futebol do DF para torcerem somente para times cariocas. É por isso que dou ponto a um conhecido, que, nascido no Plano Piloto, escolheu torcer para o Gama, como depois fizeram seus filhos. Dia destes vou ao Bezerrão assistir a um jogo com ele - porque não? Será uma prova de apreço pela ilha que me acolheu, e ela bem está precisando de gestos assim para poder evoluir na formação de sua alma.

O Maltrapa disse...

Caro Márcio, os amargurados não sorriem...

(continua)

Anônimo disse...

Rapá...
sou por demais suspeito para concordar, digo, comentar.
Negóssiguinte: tem uma rama de foto boa aqui, como é para colocar na mão de vossa sinhuria?

O Maltrapa disse...

Caro Anônimo, se suncê se refere às fotos do último final de semana, creio que enviá-las por emêio (oantropolicomaltrapilho@gmail.com) não vá ser muito produtivo.

Portanto, grave-as em um disco a raio laser e me dê uma grambelada que eu vou buscar; que lhe parece?

Abraço,

O Maltrapa

Unknown disse...

"E agora, Lúcio? E agora, Oscar? Porventura desconfiariam que o avião iria naufragar?". Ficou lindo isso, emocionante. Beijos saudosos

O Maltrapa disse...

Obrigado, Letícia! De quando em vez, uma ou outra frase acaba saindo bem, né? :P

Beijão,

O Maltrapa

Deusa disse...

Olaaaa
adorei sua visita
o seu texto ta fantástico
mas o filme é sempre ó mesmo ..só muda o endereço do cinema ...rsrs
Um abraço carinhoso..viu?

O Maltrapa disse...

Mas esta é justamente a pior parte da estorinha, Deusa; por mais que o filme seja repetido, insistimos (como cidadãos) em manter intacto o "copião", e tudo segue como dantes do quartel de Abranches...

Beijo,

O Maltrapa

Márcio disse...

Que porra de comentário foi esse que você me dirigiu, Escriba? Assim vão terminar te cobrando royalties (rs)!

O Maltrapa disse...

Deixe de ser abusado e ranzinza Contreiras!... E sorria mais, meu caro; mesmo que seja para aproveitar o reflexo envidraçado desses edifícios modernos e azuis, -estilo neogrecogoiano-, pelos quais vocês demonstra tanto apreço.

E seja mais paciente!

(continua)

O Maltrapa

Deusa disse...

Maltrapinha ..rs
Vim aqui te jogar um pouco de " confetes" ...rsrs
Sejam seus dias carnavalescos agitados ou não , te deixo um pouco de Alegria !!
abraço apertado
Lilian

Dias de Setembro disse...

"Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come"...
Não tenho ilusões quanto à prisão do Arruda, acho que nada muda no nosso corrupto sistema político.
O fato é que as ilhas apodrecidas continuarão pelo Brasil afora e, infelizmente, não é só Brasília a detentora desse título.
Beijos carnavalescos e dá-lhe marchinhas do Pacotão, Tita

Sandra Gonçalves disse...

E quando eu digo que quero morar no mato, me chamam de caipira de minas gerais...
Acho que sou bicho, e sou melhor me sentindo assim.
Volto sempre.

Roseane z disse...

Ô Maltrapa, cadê tu no Pacotão?Ai , ai , ai Arruda, seu gabinete agora é na Papuda....!!!!Esquece a desilusão , pq pegaram o ladrão!!!
beijos alcoolizados procê!!!!,

p.s- cê não sabe como foi difícil postar este post com as letrinhas fugindo do meu campo visual ...hahhahaha)

Anônimo disse...

Oinc, oinc...

Perolas aos porcos:

http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI4253618-EI6581,00-Cid+Teixeira+O+certo+seria+o+Dia+da+Consciencia+Mulata.html

Acho realmente um crime vossa merce nao conhecer aquele lugar como a palma de sua mao.

O Maltrapa disse...

Obrigado, Lilian, pelos confetes, pelas visitas e por todas as boas energias, além do abraço apertado, claro!

Pule por aí você também!

Beijão,

O Maltrapa

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Tita, há quanto tempo!

Claro que não há muitas esperanças de que o 'homem' apodreça na masmorra, mas só o simbolismo da questão, em si, já valeu toda a alegria deste Carnaval. E por mais que haja o perigo do filme se repetir e o salafrário fugir, a porteira já está aberta. A cidade está amadurecendo; pode ser que se transforme numa ilha de corruptos encastelados em seus condomínios de luxo, mas, a julgar pelos últimos atos, há qualquer nuance de esperança no ar...

Beijão,

O Maltrapa

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O problema das cidades, Sandra, é o ritmo; que não nos respeita e não nos dá espaço ou tempo para vislumbrarmos a dimensão da nossa maior grandeza; aquela, dentro de nós.

Também sou bicho!

Bem vinda,

O Maltrapa
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Alô, alô!!! Z na passarela! Sai da frente porque ela atropela e passa por cima!

Tive problemas extra-conjunturais e não pude carregar o Pacote com a massa. Mas amanhã, tô lá!

Beijos de Água de Côco,

O Maltrapa

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Caro Anônimo,

Quando se chega à casa de alguém, não dá para ficar chamando neguinho de porco, não é mesmo?

Mas como Jesus, vou dar a outra face e lhe agradecer pelo link da entrevista (que é relamente muito interessante). O único pormenor é o fato dela não ter nada a ver com 'Fitas Lilases', e sim com O 'Dia Nacional da Consciência dos Branquelinhos da Bunda de Geléia'. Vamos se ligar no tópico do texto antes de comentar qualquer generalidade!!!

E vai pular o Carnaval antes de voltar aqui, distribuindo gentilezas, meu amigo!

O Maltrapa

Márcio disse...

Escriba, parece que você ainda não entendeu como funciona esse negócio de internet e blog. Não há como pautar/direcionar os comentários que chegam. Se extrapolam o tema original, tanto melhor! Sinal não de limitações, mas de possibilidades mil. Viva a rebeldia! Guarde a valentia para detonar as platitudes, pois estas sim em nada contribuem! Quando ao anônimo, não atoche no rapaz, pois é um menino que Deus guarda! Até hoje estou esperando uma resposta digna a meu comentário original. Cadê??!!

O Maltrapa disse...

Caro Márcio, já te falei anteriormente que esse lance azul na sua cabeça deve estar embaralhando suas idéias...

Como se diz na Bahia, a porra do bróg é meu e eu faço a porra que eu quiser com essa porra, certo?

Se o filho do Belezebu aparecer por aqui falando pitangas, será recebido de acordo com seu propósito. Não fui valente, mas coerente.

Se o mundo virtual é entupido de "liberdade", azar o dele. Aqui, no Maltrapa, quem canta de galo sou eu, rapaz.

Aliás, se os fatos me desmentem, pior para os fatos!

Sua resposta está a caminho.

O Maltrapa

Ps: os comentários devem ter, preferencialmente, conexão com o tema abordado. Para maiores delongas, escreva um emêio ou crie seu próprio blog.