segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Dois de Novembro




"O importante não é saber o que fazer com

o destino, mas saber o que fazer com

o que o destino fez com você."


(Sartre)




Há pessoas que carregam a pecha de amargas durante toda sua vida. Parecem não se incomodar, apostando sempre na manutenção de uma dor injusta, relutando a se rebelarem contra o dissabor que lhes foi servido à mesa do destino.

Por trás de um comportamento azedo há sempre um nó emocional – daqueles bem dados, como em cadarço molhado. A falta da atenção materna ou o excesso da violência paterna são evidências fortes, mas o que parece tirar de vez o açúcar da vida é o Amor rejeitado.

Moema, minha avó, teve uma vida assim, marcada pela falta de atenção, de carinho e de amor; uma mistura cítrica.

Mas o que fez sua alquimia afetiva se tornar ácida foi o tempero do abandono, que a deixou viúva em vida; primeiro, dos pais, depois, do marido, com cinco crias a tira-colo.

Apostava, em seu íntimo, que a Justiça Divina haveria de retocar-lhe o tropeço, devolvendo-lhe o homem amado e a alegria de uma família modelo. Enquanto isso não ocorria, contudo, relutava em debelar-se do pranto.

Apesar dos bonitos olhos azuis, seu rosto era triste, dum conformismo opaco e mal disfarçado, tão comumente visto nos semblantes divorciados da felicidade. E mesmo com alguma boa intenção, demonstrada pelos confortáveis coletes de lã feitos em crochê, sempre havia razão para acreditar que ela estava insatisfeita, pois reclamava de tudo, de todos.

Lembro à perfeição quando, numa tarde, passou por nós, seus netos, enquanto almoçávamos num restaurante próximo à sua casa. Assustada com “todas aquelas crianças agitadas” e sem naturalidade para beijos ou abraços, deixou rapidamente o local, pensando alto: “São uns selvagens!”. Meu pai demorou anos para digerir esse desconforto.

Foi uma expressão infeliz e forte que ficou marcada no meu inconsciente, afastando minha avozinha do meu convívio por muitos anos. Felizmente, com o tempo, isso começou a mudar.

Como das relações humanas o mínimo a se esperar é tudo, pude, já “hômi feito”, reinterpretar as marcas em seu rosto. Passei a visitá-la semanalmente, e a cada encontro, uma expressão de leveza, ainda que tênue, surgia em sua face. Já aceitava o carinho do meu sorriso e o calor do meu abraço. Ela me preparava chá e bolo, como só as avós fazem. E me servia em xícara de porcelana nobre, com motivos orientais em alto relevo e colherinha de prata. Ao final, exclusivamente para me agradar, dava-me sorvete de abacaxi.

Quando estava inspirada, falava da inteligência dos filhos ou de curiosidades da família e de sua própria vida. Chegou a fazer um Mestrado em Sociologia, na Cidade do México. E trabalhou na Fundação Nacional do Índio.

Todas as abordagens que fazia sobre a vida, porém, não iam além do próprio desejo não atendido: família e estabilidade. Dizia que eu deveria “fazer tudo certinho”, “não criar confusão” e “estudar muito”. Mas sempre me chamava pelo nome de um dos meus irmãos, e freqüentemente fazia alusão a experiências que também não eram minhas – chegando a ser, muitas vezes, dos meus tios!

Certa vez, quando me contava sobre o longo caminho que teve de percorrer para comprar aquele pote de sorvete, algo muito surpreendente aconteceu. Mal ela acabara de dar desfecho ao relato, quando me perguntou se eu queria mais. Como recusar oferta de avó pode render alguma maldição, aceitei. Ela então foi à cozinha, e assim que retornou, começou a me contar sobre o longo caminho que teve de percorrer para comprar aquele pote de sorvete... Do mesmo jeito, com todas as ênfases e entonações há poucos minutos utilizadas. Fiquei sem fala. A partir daquele fato, tive a certeza de que nossa relação ficaria, no mínimo, algo psicodélico.

Mas não houve como saber. Devido a recomendações médicas, Moema se mudou dali a poucos dias para usufruir os ares de uma cidade litorânea. Passou os últimos anos de sua vida em Salvador.

Voltou a Brasília quando, após uma queda, bateu a cabeça no chão e precisou receber tratamento adequado. Assim que ela chegou, fui visitá-la. Estava paralisada por um derrame e nada falava. Mesmo assim, trocamos sentimentos. Pude olhar em seus olhos, ainda azuis – e agora mais brilhantes – que ela não estava mais triste, que não guardava mágoas e que não trazia mais, enfim, a dor do rancor.

Dois dias depois, morreu. Não fui ao seu enterro.

No Dois de Novembro, quando entes perdidos são enaltecidos, penso em minha Vó Moema e não me sinto triste. Tampouco tenho vontade de ir ao cemitério.

Não sinto que uma visita seja significativa dentro do contexto em que construí minha relação com ela. Prefiro investir nas boas lembranças, como na satisfação de pensar que ela, ao fim da vida, já sabia o quanto era doce o viver.
.
"Somente o tempo, o tempo só
Dirá se irei luz ou permanecerei pó
Se encontrarei Deus ou permanecerei só
Se ainda hei de abraçar minha vó"

(Gil, em versão de letra de Robert Nesta Marley)

10 comentários:

Celamar Maione disse...

Bonita a história da sua avó. Ela queria apenas ser feliz. Da maneira dela.
Não sigo a tradição de visitar cemitérios no " Dia dos Mortos". O carinho e o amor devem ser cultivados em vida.
Respeito quem segue a tradição. Enfim, cada um com a sua maneira de ser.
Vou procurar o texto que " citou" no meu blog.
Obrigada pela sua visita.
Abraços

O Maltrapa disse...

Bem-vinda, cara Maione!

Concordo contigo, que as pessoas devam, à sua maneira, buscar meios e formas de homenagear aos que já se foram.

Sou, no entanto, como Nelson Cavaquinho, e prefiro ser homenageado em vida, com amor e verdade.

O texto da calcinha é este aí, logo abaixo (Luar Desbundante).

Vi que você tem outro blog de poesia. Vou visitá-lo também!

Um abraço,

O Maltrapa

Ps: minha vó morreu feliz porque iria, enfim, reencontrar seu grande amor, que já a esperava no céu.

Marcelo Mayer disse...

a melhor maneira de homenagear é rir das "merdas" que passei junto com a pessoa. de cada bebedeira que fiz, de cada desencontro que presenciei

muito bom cara!

Catarina Franco disse...

e não poderia ter história melhor para esse dia. Na minha cultura tb não se comemora o dia dos mortos, não se vai ao cemitério e nem acende uma vela. Pensando em vida e morte, sua avó com certeza lhe ensinou muito, e obrigada por compartilhar isso. Aprendi outros significados para essas duas palavras. Que texto!

Marina Duarte disse...

Linda a foto!!!

O Maltrapa disse...

É isso aí, meu polvo, tem que homenagear a vida (mesmo quando ela, aparentemente, já se foi)!

Valeu, Marcelo, Ana e Marina!

Ps: minha mãe disse que os olhos da Vó Moema eram castanho-claro... Não importa; ainda que daltônico, amo!

O Maltrapa

as viciadas disse...

detesto dia de finados.
gosto de lembrar da vida, e não da morte.


Maltrapa.
a falta de tempo é foda[ou não].hahaha porque se fosse falta de tempo por causa de foda, tava bom, mas é por causa de trabalho e facul, fim de semestre, loucuraaaa.
quando penso em escrever, lembro de todas as mil coisas que tenho que fazer. e tenho outro blog mulherzinha, e tb tá quase às moscas.

Voltarei com tudo, não perca por esperar.

Bjone,meu caro.

L.

Carol Sakurá disse...

Olá Maltrapa!

Agradeço demais pela visita lá o blog!
Já amei,estou seguindo e adicionei aos meus favoritos.
Enfim,Vó Moema deixou uma história marcante e foi muito bela a maneira que explorou em forma de conto.
Aprendi em poucos minutos de leitura.
Beijos!

Carol Sakurá

O Maltrapa disse...

Voltando das catacumbas do além, pinta Senhorita L. e, na maior cara de pau, diz que não gosta de dia dos mortos? Ora, quanta desfaçatez! Hahahaha!!!

"blog mulherzinha", é? Hum...

O Maltrapa

O Maltrapa disse...

Valeu, Carol! Vó Moema fez por merecer a homenagem! Dos zangados, só que gosta é a Branca de Neve! Pensar em alguém ranzinza, nos deixa azedo; pensar em alguém sorrindo, nos deixa doce.

Beijo Grande,

O Maltrapa