sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Dia Nacional da Consciência dos Branquelinhos da Bunda de Geléia


Um desses almofadinhas moralistas que preenchem as manhãs televisivas deste país abre seu programa anunciando que hoje é o Dia Nacional da Consciência Negra, mas avisa que não vai nem falar sobre racismo. Segundo ele, é a mesma coisa que falar de burrice; "nem vale a pena".

Para quem não sofre na pele o preconceito de pele é relativamente fácil dizer uma asneira assim.

Fiquei pensando se toda a gente preta do estúdio onde ele trabalha passasse a tratá-lo por aquele ”Branquelinho da Bunda de Geléia“; aposto que sua noção entre racismo e burrice ganharia novos contornos.

O racismo é fruto da ignorância e do preconceito disseminados, sistematica e triunfalmente, ao longo dos séculos.

Não se trata de uma patologia da pele alheia, mas da própria alma. Desenvolver a consciência sobre essa condição não é tarefa das mais fáceis. Implica em algo muito mais além do simples discernimento entre o certo e o errado, mas numa revisão crítica da nossa própria essência, reformulando profundamente a visão que temos de nós mesmo e do outro.

Não faz muito, num tempo em que eu já era nascido, um desses branquelinhos da bunda de geléia (e que se auto-intitulava Presidente da África do Sul), defendeu o apartheid pronunciando um irretocável sofisma: - "Diferenças existem e devem ser respeitadas! Por isso é que defendemos que os brancos devem continuar a serem tratados como brancos e os negros como negros - que é o que são." Nesse tempo, Nelson Mandela já se encontrava preso numa ilha, condenado à prisão perpétua, enquanto a comunidade internacional se calava - exatamente como o branquelinho mudo da TV.

Sobre Mandela, aliás, reconheço que sabia muito pouco. Não imaginava, por exemplo, que ele fora um brilhante advogado ou um ativo praticante do boxe, e também que era alto, forte e bonito, sendo admirado por todos, à exceção (claro!) dos branquelinhos, que temiam o negão, de quase se cagarem nas calças. Mandela os olhava nos olhos.

Certa vez, foi ao tribunal como advogado de defesa de um rapaz preto acusado de estuprar uma jovem branca. O juízes, promotores e advogados de bunda de geléia não toleravam o olhar altivo de Mandela, e era esperada uma condenação exemplar. Com o efeito, a missão de Nelsinho era inglória: Como travar um debate justo com uma gente eivada de preconceito e orgulhosa do racismo que exibiam como bandeira?

Contrariando as normas de então, solicitou a presença da vítima para que pudesse, ele mesmo, inquiri-la sobre o ocorrido! Não obstante tal "infâmia", o tenaz advogado aproximou-se da pobre moça e, em tom claro, para que todos os presentes pudessem escutar, perguntou-lhe em que condições havia se dado o estupro, e em que momento se dera a penetração. A jovem entrou em pânico.

Afinal, como revelar detalhes tão sórdidos em frente a todos seus familiares e membros de sua casta? Como admitir um ato tão vil e nojento, se somente a idéia de haver sido penetrada por um homem de cor lhe era de tal modo repugnante que faria, dela mesma, uma mulher para sempre condenada moral e fisicamente por sua própria gente?

Por fim, ela negou veementemente a possibilidade de haver sido violentada, pondo fim ao julgamento e dando a liberdade a um criminoso. O desejo de vingança sucumbiu ao ódio que ela mesma carregava em seu DNA. O preconceito dela fora maior que o próprio trauma emocional e da dor que certamente a acompanharia pelo resto da vida.

Mandela, tal como Gandhi, João Cândido ou Zumbi dos Palmares são exemplos lapidais de uma gente que, mesmo sob o tacão da violência, do preconceito e do racismo, ofereceram a inteligência como instrumento de resistência e liberdade.

Ter uma bunda de geléia não é uma escolha nossa; preservar sua cabeça cheia de cocô é. Um dia aprenderemos.

12 comentários:

Marcya disse...

Como advogado, Mandela realmente foi brilhante; mas como o humanista que logo se tornou, ouso dizer que errou feio: um criminoso capaz desse tipo de monstruosidade não escolheria nunca a cor de suas vítimas. É bom refletir sobre a complexidade das relações racistas do apartheid, que iam - e ainda vão - muito além da luta de Mandela.
Tomara que a gente aprenda mesmo um dia.
Beijos...

Marcelo Mayer disse...

eu, não farei comenta´rio algum sobre esta dia. pq me chamam de racistas quando digo oq penso. mas guardarei aqui

não vivo a raça negra
vivo a raça humana

desculpe, não quer criar polêmica
rs

abraços

O Maltrapa disse...

Marcya, o exemplo que dei, mostrando Mandela como defensor do autor de um crime hediondo, como o estupro, não foi casual. O fato da própria vítima ter negado o ocorrido é tão estarrecedor como o próprio fato em si, e acabou servindo para explicitar como o racismo pode estar muito mais incutido e consolidado na alma humana do que pressupõe nossa vã filosofia.

Beijos...

O Maltrapa
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Marcelo, se você se cala, é como se você corroborasse a demagogia do almofadinha da TV.. Ou não?

Abraço,

O Maltrapa

Carol Sakurá disse...

Olá,Maltrapa!

Nunca havia ouvido sobre este acontecimento.

Prova que o caráter humano sempre fica na linha tênue do bem e do mal.

Abs!

Carol Sakurá

Roseane z disse...

Olha a cobra engolindo o rabo....Há bem pouco tempo, aqui na terra brasilis , o último ato dos assaltos a residências, consistia, pela bandidagem , em estuprar “ uma filha da casa” para que não houvesse denúncia .Por que¿No inconsciente coletivo, a mulher é responsável por ser estuprada.No caso, usou-se um preconceito para eximir o outro.Concordo com a Marcya, a estratégia foi brilhante , mas o modus operandi, um lixo!!! Afinal, independente da cor da pele, aquele homem violentou a moça! Bom, o script da humanidade continua. Maquiavel continua líder de audiência!!!Enfim, sabe-se por ai que todo ideal exige sacrifícios.Ahh Maltrapa , agora , cê me maltratou com essa do Mandela.....Será mesmo que todos nossos heróis morreram de overdose¿ bbjjiinns da Z.

O Maltrapa disse...

Cara Carol, Doce Ms Z,

Utilizar um caso que envolve um estupro para elogiar a postura de quem quer que seja é algo que aparenta grande contradição, sei disso. Era certo que o leitor seria levado a indignar-se com o fato do Mandela ter livrado a cara do estuprador. No entanto, esta é apenas uma parte da leitura. Não estou maquiavelizando o contexto, Ms Z, mas utilizando um dos mais abomináveis exemplos de violência (o estupro) para evidenciar um outro tão danoso quanto, mas que, aos olhos de muitos, nem merece ser discutido.

Eu fiquei chocado quando Mandela fez esse relato, pois não imaginei que o racismo fosse capaz de servir como acobertamento para algo tão hediondo como o estupro.

Eu poderia citar inúmeros exemplos de bravura e coragem desse homem, mas estaria caindo em vários lugares comuns. Por incômodo que seja (e é), entendo que a evidenciação do racismo seria realçada quando associada ao caso do estupro. Os traumas -principalmente emocionais - que ambos causam são equivalentes, pois deixam na vida da vítima a sensação pétrea de que ela é menos do que realmente é.

Beijo pras duas,

O Maltrapa

Dias de Setembro disse...

João,
Acho que, ao contrário das meninas aí encima, entendo que Mandela, ao relatar o caso do estupro, NÃO, NÃO e NÃO o estava justificando, mas realçando o quão grande é o racismo de um ser humano (no caso uma mulher), que preferiu, à condenação desse homem que a violentou a sua absolvição, ante a VERGONHA DE ADMITIR QUE HOUVERA SIDO ESTUPRADA,ESTUPRADA POR UM HOMEM NEGRO.
Chegar a um cúmulo desses de perda de sua dignidade para não admitir o ESTUPRO EM SI porque fora cometido por um NEGRO, é sim um exemplo cabal de até onde o racismo leva o ser humano...não sei, é a minha impressão do fato.
Beijo, tita
PS: O que esse cara (M. Mayer) aí quis dizer??????????????????

O Maltrapa disse...

Cara e Sumida Tita,

Sua impreessão bate com a minha. Admito que corri o sério risco de enfiar os pés pelas mãos ao abordar a temática da violência sexual num mundo injusto, machista e traumatizado como o nosso. E talvez eu tenha mesmo sido pouco claro em minha tentativa de falar exatamente o que você falou.

Resumo da ópera: quando o racismo fala mais alto que a dor de haver sido violentada, entendo ser este um contundente exemplo de como há males pouco visíveis em nossa sociedade e que, não obstante condenarmos o preconceito, continuam a nos servir de lema.

Beijo grande,

O Maltrapa

Ps: li a carta de um leitor, na Folha de São Paulo, onde ele sugeria que o dia se chamasse Dia Nacional da Consciência Pesada; adorei!!!!

Ps2: quanto ao Marcelo Mayer, tenho a discreta certeza de que ele não lê os textos, mas somente o título e a foto, pois os comentários dele nunca tem a ver com o que escrevo. Enfim...

Anônimo disse...

Um dia estava na unb, falando sobre as cotas. Na época eu era contra as cotas por achar que era apenas mais uma forma de preconceito e racismo. Até o presente momento eu realmente acreditava nisso, mas bastou uma amiga minha falar:
- Você já sofreu preconceito racial? Já te excluiram por causa da sua cor?
E eu timidamente disse que não. A menina me olhou rapidamente e na mesma hora respondeu:
- Então cala a boca porque você não sabe o que é preconceito.
É....lembrei dessa história quando li o seu texto...
Parabéns senhor branco bunda de geléia! O seu texto está forte como um gancho de direita. Gosto disso.

Dias de Setembro disse...

Não tô sumida não, João, sempre tenho lido, com prazer, os seus textos, embora, de fato, não tenha comentado, porque, pra comentar, é necessário mais tempo em respeito a você e seus textos, tempo esse que tem estado escasso nesse final de ano, além do turbilhão emocional (bom!!!!!!) em que ando por outros motivos rsrs
Porém, ao ler o texto sobre o racismo, mandei ver porque é algo que já senti na minha pele morena.
Bom, quanto ao seu leitor, agora "intindi"...E viva o Dia Nacional da Consciência Pesada.
Beijo, Tita

Amarilis disse...

Oi João, gostei muito do seu texto. Apesar do racismo, que teima em continuar, o nosso mundo não é branco e preto, muito menos é justo.

Sobre o julgamento do homem negro, arrisco dizer que ninguém deve ser condenado sem ser julgado. E se o julgamento não leva à justiça, a sociedade carece se repensar.

Vc viu o artigo de César Benjamin na Folha de ontem?

Beijo.

O Maltrapa disse...

Concordo com você, Amarilis. Acho até que não há que se esperar por mais nada para que repensemos o processos sociais ditos "justos e igualitários". Fosse a Justiça justa, a profissão de advogado nem deveria ser remunerada, ou poderia-se inferir que quanto mais dinheiro o réu tenha, mais a justiça lhe será feita; pensamentozinho tosco, mas que reflete a realidade tal qual a conhecemos e concebemos.

Beijão,

O Maltrapa

Ps: não li a Folha de ontem, mas vou dar uma olhada aqui no UOL.