quinta-feira, 6 de agosto de 2009

A Paixão é Cega - Ademir do Amendoin














Pela filosofia que a vida me deu, seria
capaz de afirmar que uma das características fundamentais do ser humano é o
preconceito. Somos, creio, moldados por ele, desde e antes de sermos o que
somos. E quem afirmar o contrário, além de preconceituoso, correrá o risco de
ser taxado de hipócrita.





Eu, coitado, que traigo em mim a verve dum
esquerdista – um humanista!-, já me iludi muito, e pensava que homens assim não
tinham preconceito de nada... Pura bazófia! O preconceito engana a própria
consciência. O preconceito é a manifestação do que há de mesquinho e até
covarde no ser humano, pois é utilizado para apequenar o próximo e tirar-lhe a
beleza, tendo por argumento... O nada.





Quando se olha torto para alguém maneta,
por exemplo, estamos sendo preconceituosos, pois alguma coisa em nossa mente
está, equivocadamente, nos dizendo que esse alguém é menos alguém que nós
mesmos. Nesse sentido, Darwin poderia dizer que nosso preconceito é de base
biológica e está fundamentado na “lei do mais forte (ou mais apto)”, e que tal
lei se aplica a todos os seres vivos. Nós, portanto, estaríamos apenas “sendo o
que podemos ser”, naturalmente...





É, pode até ser, mas não à toa estamos
no topo da cadeia alimentar. Estamos ali pela Razão, e não por outra, estamos
aptos a refletir mais contidamente sobre a insistência da aplicação dessa mesma
lei em nós mesmos, mesmo após já termos passado por Iluminismos, Renascenças,
Apartheids e burguesas revoluções, História afora.





Stephen Hawking, o físico que sofre de
uma doença degenerativa (esclerose lateral amiotrófica), por exemplo, não
estaria adaptado a muitas das situações do cotidiano, mas certamente é
reconhecido pela humanidade, não só por sua inegável capacidade de superação,
mas, principalmente por seu legado científico.





Por outro lado, uma imensa parcela dos
seres humanos considerados aptos ou normais, estes perecerão sem a contribuição
devida. Emblemático, né, Charles? Quando religiosos, nos apiedamos; quando
politizados, nos solidarizamos; quando humanos, somos preconceituosos.





Por vezes, vieses e vias tortas, flagrei-me
apaixonado por moças cegas. Paixões fugazes, que não duravam mais do que o
alcançar dos meus olhos ou uma corrida de ônibus dentro do Plano Piloto. Era como
um encantamento que me fazia acreditar que a privação da visão lhes daria
sensibilidade extra, deixando-as com o coração eternamente puro. Trata-se do
mesmo encantamento que nos faz acreditar que o preto tenha mais apetite sexual
que o branco; um encantamento chamado preconceito.





Dia desses, num desses botecos da pior
qualita (que são os que costumo freqüentar), avistei Ademir, o vendedor de
amendoins. Ele mora no Jardim Roriz, um apêndice de Planaltina, onde nasceu, há
33 anos. De tanto nos esbarrarmos, criou-se um pequeno vínculo, pelo que, a
cada novo encontro, nos saudávamos cada vez mais efusivamente. Ademir costumava
me dar dicas sobre o movimento das manadas, revelando onde poderia encontrar
moçoilas incautas e insaciáveis. Em contrapartida, tratava-o com afabilidade e
distinção, além de comprar um ou outro amendoim de quando em quando.





Certa vez, querendo ir além do óbvio,
arrisquei perguntar sobre sua vida pessoal. Digo arriscar porque não me sentia
de todo à vontade, visto que, além de gago, Ademir tinha paralisia infantil, o
que lhe atrofiou severamente um dos braços e uma das pernas, resultando num
caminhar sôfrego, como o de um Cristão na via-crucis. Perguntar-lhe diretamente
sobre sua vida pessoal foi a forma que encontrei para vencer meu preconceito.





Ademir era como eu: gostava de mulher e
de futebol. Sim, futebol! Ademir, que mesmo não sendo o Da Guia ou o Menezes,
fazia questão de ser como qualquer moleque que fugia de casa para jogar uma
pelada, e que depois voltava, tome chinelada!





Observando que ele relatava tudo aquilo
com sincera excitação, senti que perguntar sobre as dificuldades enfrentadas
seria como admitir uma profunda estupidez. Se a perna recolhida o impediu de
marcar mil gols, não sei bem, mas é certo que isso não teve qualquer influência
em como Ademir encarava sua existência: - Eu era ruim na corrida, m-m-m-mas
ninguém roubava a bola dos meus pés!... - Arrisquei mais, perguntando sobre “a
mulherada”, e escutei uma estória recém-iniciada, segundo ele, com uma
“nigrinha quente”: - Eu t-t-t-tava atrás dela há um t-t-t-tempão, mas ela
recusava; me achava es...tranho e coisa e tal. De tanto insistir, ela cedeu...
E agora, quer me n-n-n-n-namorar! – Provocando-o, questionei se ele dava conta
do recado. Resposta: - Ela é exigente, mas eu sou o Ayrton Senna!





O tempo passou e, como relatei alguns
parágrafos atrás, o reencontrei pelos mesmos recantos. Tendo-o cumprimentado,
perguntei como ia a vida, no que logo a “nigrinha” voltou à baila. Disse que
estavam como estilingue; que iam e vinham, entre tapas e beijos. Fiz uma pausa
e o encarei, indagando: - “E por que é que vocês brigam tanto?” Ademir então
ajeitou no antebraço as cornetas de papel cheias de amendoins, e já se
aprontando para se esquivar, como quem não quer dizer o porquê, soltou, virando
a cabeça: - Futilezas... Futilezas! -, saindo, naquele caminhar aparentemente
trôpego, mas solidamente decidido. Salve Ademir!!!






















































Um pouco de gente inteira nesse mundo é
preferível a um mundo inteiro de gente pouca.





17 comentários:

CausosContosPoesia&Sol disse...

Jonjon, cada texto seu é uma chamada... muito bom mesmo!!!!
Seus post's só melhoram...bjos
E aê, kde? Vamos à piscina do Urubú? Bjos

O Maltrapa disse...

Obrigado, Inaê! O exercício molda tudo; do texto ao caráter!

Vou combinar direitinho e te dou um toque sobre a piscina.

Beijão,

O Maltrapa

Unknown disse...

muito bom maltrapa!!! e deixe de lado as futilezas.

O Maltrapa disse...

É tudo uma questão de "sutilidades", caro Frã...

Abraço forte,

O Maltrapa

O Maltrapa disse...

Que beleza João,
a cada texto escrito uma melhora acentuada. Parabéns!!!
Sigo daqui o seu caminhar no cotidiano da escrita. Vamos assim caminhando juntos, porém distantes.
Um forte abraço
Frank

O Maltrapa disse...

Beleza pura sem mistura, De Azevedo Coe!

Quando trabalhava no aeroporto, escutava um supervisor dizer: "tirando a gente, tudo é passageiro"! Hahahaha! Inclusive a distância...

Abraço forte rumo ao Sul,

O Maltrapa

Márcio disse...

"Traigo"? Recebeu um Cervantes enviesado por aí, Lima Santos? Quando o cabôco Pasquale baixa aqui deste lado, você sabe que não tem perdão!

"Quando se olha torto para alguém maneta, por exemplo, estamos sendo preconceituosos ..." Calma lá, que os zarolhos têm o direito sagrado de olhar torto para quem bem quiserem ...

O Maltrapa disse...

Que bom que você tenha retornado, baiano, pois adoro sua provocações fuleiras e mequetrefes! Hahaha!!!

Em relação aos neologismos, admito que sou adepto do dito estilo-livre-libertário, onde o auto-proclamado escriba tem todo o direito de fazer o que lhe der na telha, tendo, porém, a preocupação e o zelo de ser bem compreendido por aqueles que o leem, pois sim?

Quanto aos zarolhos... Será que eles olham torto ou torto é somente o olhar deles? A pensar...

Grande abraço,

O Maltrapa

Roseane z disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anônimo disse...

Oi João, bacana essa reflexão, sobretudo por ser um tema sempre presente em nosso dia-a- dia...me lembro que conheci uma pessoa à distância, até que, prestes a acontecer o nosso primeiro encontro tête-à-tête, disse que era negra, o que, imediatamente, fez com que o moço nunca mais me procurasse ou atendesse aos meus chamados.
Quer dizer, tive a “impressão” (sempre é melhor duvidar!) de manifestação explícita de preconceito. Agora, o pior de tudo: ele fazia doutorado na área de História Social (?). Pra não me chatear e tentando compreender a situação, pensei que talvez ele gostasse mesmo é de louras...direito dele, né? De todo modo, perdeu ele...rs
Engraçado, depois que contei essa história, fiquei pensando sobre as “minhas” atitudes preconceituosas, a respeito das quais me me calo (humano, demasiado humano!)... e o legal é que você indaga sobre o “seu” preconceito e não fura o olho de ninguém, especificamente, como eu acabei de fazer.
Adorei o “um pouco de gente inteira nesse mundo é preferível a um mundo inteiro de gente pouca”.
E viva o Ademir! Até, Tita

O Maltrapa disse...

Well, Ms. Z... pois este Maltrapa está com os olhos marejados... Obrigado, de coração.

Um beijo,

João

O Maltrapa disse...

Cara Tita, pondo em pratos limpos, as loiras são perfeitas, mas as morenas... Ah, elas são ainda melhores! Hahahaha!!!

Este Maltrapa já jogou muitas palavras ao vento;hoje, busca a maturidade da forma como foi concebida por Kant, e belamente colocada pela querida Roseane.

Um abraço,

O Maltrapa

O Maltrapa disse...

Roseane, faltou um ps: com emoção é mais gostoso, né?

Beijo grande,

O Maltrapa

Roseane z disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Dias de Setembro disse...

Mas as morenas...rs levantou meu ego, ainda mais vindo de você, João. Tita

Marcya disse...

Entre futilidades e sutilezas, vamos aprendendo a descobrir a essência... Belíssimo texto, meu lindo! Beijos...

O Maltrapa disse...

Sabe tudo...