![]() |
Valdeliano e seu caminho existencial: um feixe luz. |
A franja sobre os óculos de aros
grossos estacionados no meio do nariz, os dentes avantajados e o forte sotaque
do interior mineiro conferiam a Valdeliano simpatia no jeito e comicidade na
aparência. Dois dedos atrofiados na mão direita faziam a audiência se perguntar
se escolhera a melhor atividade para sobreviver. A audiência é perversa.
Valdeliano não teve muita escolha na vida.
Quando foi morar no antigo acampamento
da Telebrasília, não havia pavimentação e tudo era precário. A lama subia na
calça quando chovia e a poeira entalava na garganta quando não. Ali se
estabeleceu após o segundo casamento, ocasião em que, além da mulher, perdeu o
dinheiro que sobrara do primeiro, restando somente alguns caraminguás que guardara
no colchão.
Quinquagenário, sem alternativa,
empenhou-os numa camioneta de quarta-mão, fazendo do frete seu ganha-pão - a ‘Mulinha’
(porque cambaleante, rangenta e vagarosa) dava conta de pequenas mudanças.
Numa dessas madrugadas frias de
maio ou junho, tão logo os cachorros do vizinho latiram para o primeiro infeliz
que cruzou o beco, Valdeliano despertou. Vendo o breu, fingiu que não e tratou
de colocar o travesseiro sobre o ouvido para pegar o sono pelo rabo. Não deu; a
bexiga cheia não deixou. Alcançou os óculos sob o travesseiro e se pôs sentado.
Agasalhou-se com a própria coberta e seguiu para a casinha, fora do barraco. Chovia
fino. Era o resquício antes da estiagem no Cerrado. Pronunciou o queixo e
bafejou aquele vaporzinho no ar... “Que friozin bão do carái!”, emendou, bocejando
e espiando o céu acinzentado, ainda escuro. Acabou esbarrando num balde, fazendo-o
tilintar pela pinguela; a cachorrada não perdoou. Deu sua mijada e, já sem sono,
resignou-se em abandonar a coberta, agasalhar-se e ir à cozinha fazer o que
comer.
Atarraxou no bocal a lâmpada
que pendia no ar e ligou o radinho pendurado à estante de tábuas e tijolos, ao
lado do fogareiro. Encheu o bule, colocando-o sobre a chama azulada de gás, e
fatiou dois pães dormidos, enquanto escutava aquelas conversas de rádio AM. Meteu-os
num forninho elétrico (que concertara após achá-lo num entulho próximo) e encheu
de pó o coador; esperou o bule apitar e depois derramou a água fervida,
precipitando um vapor cheiroso de café que valeu por um beijo de mãe, e Valdeliano
se sentiu bem.
Em seguida, tirou do velho frigobar
algo envolvido num pano de prato. Desembrulhou e cheirou com carinho; era queijo
mineiro, “dos mió”! Conseguia com o vizinho dos cachorros - conterrâneo seu,
que trazia aos montes e revendia na Esplanada dos Ministérios –, por isso
Valdeliano não dava queixa dos latidos: preferia acordar nas madrugadas a ficar
sem o “quejin”. Satisfeito, cortou um
naco e guardou o resto.
De um pote de metal, pegou
manteiga e passou em cada rodela fumegante de pão tostado, empilhando-as no
prato, junto ao queijo. Desenroscou a tampa de um frasco de vidro de onde tirou
um bom punhado de açúcar para pôr no copo, já com café quente até mais da
metade.
Comia tranquilamente, achando
bom o barulhinho da torrada mastigada, e esquentava o corpo com a bebida
quente. “Como um quejin pode sê tão branquin?”, filosofava, dentro da cabeça,
envolvido numa atmosfera de abstração e regozijo. Súbito, o prato estava vazio,
e pela frente o mundo real: transportar um tampo de vidro de quase três metros!
Foi uma manhã terrível, mas o
serviço foi feito. Com doses cavalares de dor, aflição e esgotamento físico, Valdeliano
venceu os três lances de escada em forma de caracol do bloco residencial, na
Asa Norte, antes de deitar o pesadíssimo fardo na Mulinha, intacto. O que só
foi possível com a solidariedade do zelador, do Seu Afrânio (o dono da mesa) e
de um pintor prestativo. Arfando, mas agradecido, Seu Afrânio deu vinte pilas
ao zelador e outras vinte ao pintor.
Quando se preparavam para sair,
o carro de Seu Afrânio rateou. Valdeliano desceu da Mulinha com uma caixa de
ferramentas à mão. Ficou quinze minutos escondido atrás do capô dizendo,
“liga!”, “acelera!”, “tá bão...”, etc., e o carro funcionou bem.
– Meu irmão era mecânico lá em
Minas! – gritou, montando na Mulinha e se picando para o local de entrega (que
ficava no térreo).
Compromisso cumprido, mesona na
sala de jantar, surgiu a pergunta:
- Quanto lhe devo?
- Uai, o sinhô qué pagá quanto?
- Não sei... - espantou-se Seu Afrânio – Qual
o preço médio do mercado?
- Mió nem falá em mercado; si fô falá em
mercado ocê num vai nem querê sabê! – disse Valdeliano, cruzando os braços e espremendo
os olhos entre a franja e o aro dos óculos, enquanto balançava a cabeça com
ares de sabedoria profunda. E os dentões sobrando pra fora da boca.
- Vixi!... Então, que tal... Cem?
- ...Cento e vinte?
- Cento e vinte! – concordou Seu Afrânio,
sacando o montante do bolso.
Valdeliano pegou, separou uma
nota de vinte e a devolveu:
- Ói, isso é pela ajuda ca mesa. Sem ocê num
dava jeito... Brigadão, mês!
créditos de imagem: joão sassi
3 comentários:
Que delīcia ler tudo isso por aqui.
Texto brilhante, como, de hábito!
Obrigada, Maltrapa!
Grande Seu Valdeliano! Cabra de caráter!
Massa demais esse causo sô! rsrsrs.
Ótimo texto contador história Maltrapa! Bravo!!!
Não sei se entendi bem o final da história, mas isso não importa tanto. Importa mais é que o cuidado com que você descreveu Valdeliano e seu mundo básico parece indicar mais passagens da vida do mineiro a caminho. Procedem minhas ilações?
Postar um comentário