sábado, 26 de outubro de 2013

Essa coisa apaixonante chamada Povo


Contra tudo e contra todos, mas a favor da Vida, segue o Povo.
  
Já senti meu peito cheio de paixão por um borracheiro -  Estivinelson - que me deu atenção tal, bela e sincera, que quis levá-lo comigo. Tão trabalhador e, principalmente, inocente, que nem parecia brasileiro, mas suas feições bonitamente mestiças o entregavam por inteiro. Ignorante embora astuto, além de sensível, era um talento desperdiçado, à feição de tantos outros milhões: brasileiros e ladrões. Os amigos do Rei roubam enquanto são dignos de foro especial. Estivinelson não precisa; é honesto. O mundo precisa dessa gente, dessa estirpe.

Já me apaixonei por uma negona – a banguela Sônia – que, ao lado de Gerusa, a Cigana, pedia carona por uma estrada perdida no interior do Goyaz. Ela era uma graça! Eu tô que perguntava daqui do volante e ela tá que respondia do banco de trás. Kalunga descendente de escravos, Sônia se acabava de rir com minha curiosidade: - “Sabe quantos habitantes tem no município?”, e ela; - “Ah, tem muitos... Hahahaha.”. Aí eu dizia - “Tenho uma parente que morou aqui.”, no que ela emendava, - “Conheço, sim! Hahahahaha!” - Tem coisa melhor pro encantamento da paixão que conversa sem sentido e risada desenfreada? Eu olhava pelo retrovisor e só via aquela boca sem dente aberta, numa alegria danada!

Estivinelson, com as mãos sujas de graxa, assoprava o dedão que havia sido atravessado pelos caninos de um pit-bull, na antevéspera: - “O cachorro era dum amigo meu. Tem galho não...”. O dorso da mão apresentava vermelhidão e inchaço, mas não ia ao hospital porque temia ser dispensado do posto de combustíveis onde trabalhava, caso ganhasse uma dispensa médica. Ocorreu dele tapar com esse dedo mordido a saída da mangueira de ar, inflando o danado como num desenho animado. A ferida certamente se inflamaria e sua mão poderia ficar comprometida; - “Em casa eu ponho álcool”, resignava-se...

Sônia teve 13 filhos, todos no mato, sem auxílio qualquer do poder público: - “Criei tudo vivo, na enxada; não perdi nenhum!”. Uns estudaram, outros se mudaram, mas há quem tenha ficado na roça. Sônia se sente feliz, apesar da vida dura, medida a léguas, entre uma caminhada e outra sob o sol forte do Cerrado: - “Hoje a vida tá mió!”. Sônia ri de tudo.

Estivinelson também, quando mostra seus dentes um pouco separados e um brilho raro no olhar. Sai de manhãzinha, de Planaltina de Goiás, para passar o dia todo trabalhando no Plano e recebendo tratamento subumano. Carro após carro, freguês após freguês, tudo o que recebe são ordens cheias de empáfia e pouca autoridade, além de alguma gorjeta. O carro do ano ou o reconhecimento daquela gente não está ao seu alcance, a não ser que banque o subserviente, coisa que não é. Então, para ser gente, estuda à noite, quando volta pro entorno da vida importante. Encarou um policial militar que bancava o valentão na sua rua, sem falar alto, olhando no olho; - “Se vivo fora de casa é porque trabalho e estudo, e não gasto meu tempo falando palavrão na frente da casa dos outros, inda mais fardado!...”. Estivinelson é Povo.

Ao lado de Sônia, Gerusa tentava e não conseguia - queria porque queria entrar na conversa, mas seus dentes banhados a ouro e prata chamavam mais atenção que sua prosa. Além do quê, eu já estava enfeitiçado pelo jeitinho da Sônia.

Na cidade seguinte, despeço-me advertindo que mantenha sempre o olho aberto com esses turistas, pois são todos descarados... Principalmente os de Brasília – só para ela responder com uma última gargalhada!... Vou embora com um sorriso gostoso no rosto, claramente cativado, do mesmo modo que me cativara o Estivinelson.

Ambos me cativam porque carregam uma humildade sincera, além de uma tranqüilidade inspiradora em relação à própria existência; a certeza de se fazer o possível e ir além, em busca de simplesmente viver.

Eu fico pensando quanta gente assim não vive por aí, sem se saber, até morrer...





Esse texto eu dedico a Darcy Ribeiro, Mestre brasileiro que completaria 91 voltas ao redor do Sol nesta data, e também a Lisa Sassi, que continua dando as suas, ainda que em menor número... Parabéns, minha irmã.

foto: joão sassi

2 comentários:

marcyaejoao disse...

Lindo texto!
Me identifiquei com o sentimento do narrador, com a beleza de Sonia e de Estivenelson.
Obrigada pela dedicatória!!!

O Maltrapa disse...

Que linda essa nossa nova identificação, mana!

Beijo grande!