segunda-feira, 23 de setembro de 2013

I feel a little more blue than then

Oh, quão dessemelhante!...
Assim que as portas do turboélice se abriram, Caetano Veloso sentiu um barrufo forte de calor bater contra seu rosto; “Brasil, enfim”! Corriam quase dois anos desde o exílio. Gil ficara em Londres, enquanto ele recebera autorização especial do governo para visita de um mês ao país. Em 1971, a vertente mais violenta e inescrupulosa da Ditadura Brasileira pulsava forte, asfixiando e calando quaisquer que a ousasse contestar.

Mesmo deprimido e temeroso, Caetano fez a viagem; precisava de afeto, carinho e dendê. Tão logo seus pés tocaram o solo pátrio, ali mesmo, no sopé da escada do avião, policiais à paisana o meteram num camburão.  “Puta-que-pariu: saí da Inglaterra para vir ser preso no Brasil!” -, pensou, enquanto se espremia entre alguns soldados, no banco de trás. A linguagem corporal dos milicos destroçava sua estrutura argumentativa, posto que não houvesse palavras, senão silêncio e intimidação física. Deixaram a pista do Aeroporto do Galeão e seguiram rumo ao centro.

Ao passarem pela Avenida Presidente Vargas, o condutor se viu obrigado a diminuir a marcha por conta do tráfego pesado. Era fim de tarde de uma sexta-feira, e o Rio de Janeiro se via iluminado por uma torrente luminosa amarelada, com muita gente correndo pros botecos atrás de um chope e alguma saliência.

Caetano mantinha a fronte baixa, evitando o contato visual com seus sequestradores que tanto o violentava. Um sinal fechado, porém, fez o baiano levantar levemente o olhar, alcançando um grupo que vinha atravessando a avenida, em sua direção – reconheceu neles os rapazes do MPB-4. Caminhavam tranquilamente, confabulando e gargalhando entre si, metidos em roupas leves e violões, tendo seus cabelos e barbas soltos ao vento, trespassados pelo brilho solar da vida. Havia pouco, um par de anos atrás, estavam todos num ritmo frenético de evolução e criatividade artística, participando de festivais musicais e dando cara definitiva à música popular brasileira.

Mas isso foi ontem... Agora, Caetano estava ali, num misto de pânico e alegria, observando, pelo vidro da janela, seus amigos passarem a centímetros dele, sem desconfiar que dentro daquela veraneio jazia um baiano cuja alma suplicava por um simples olhar; um gesto de afeto que lhe desse força para se sustentar... Mas os meninos, enfim, passaram e não o viram. Foram-se.

Caetano chorou por dentro. Sentia um amor imenso por eles em meio a uma tristeza profunda. Sem espaço para indignação, o sinal abriu, o veículo arrancou e a lágrima que se precipitara represou.

Mais de 30 anos depois desse ocorrido, eu cumpria meu tempo de serviço militar obrigatório e, como soldado do exército, estava, a oito de dezembro de 1994, de serviço de guarda no Palácio do Planalto.

Após a ceia, exaustos pela jornada puxada, muitos soldados se atiravam à cama ou se jogavam pelo chão do alojamento, buscando um mínimo de descanso, enquanto outros aguardavam pela hora da troca da guarda jogando Damas ou papeando. O Palácio disponibilizava uma pequena televisão para entretenimento daqueles valorosos homens – uma exceção à regra –, e todos puderam acompanhar as notícias do Brasil e do mundo quando um tenente ligou o aparelho para assistir o Jornal Nacional: - Já vou avisando; se tiver bagunça, vou desligar e vai todo mundo fazer faxina! - ameaçou. A tropa se sentou calada e pôs-se a usufruir do melodioso timbre da voz de Cid Moreira, amortizada.

De repente, uma notícia espantosa é dada: - “Morre Tom Jobim, inventor da Bossa Nova, após se submeter a uma cirurgia, em Nova Iorque”... – disse o Cid. A tragédia anunciada, contudo, não surtiu qualquer efeito no alojamento, enquanto meu corpo se convulsionava e eu buscava amparo no olhar de alguém, sem encontrar eco.

Na tela é exibido um momento em que Caetano interrompe um show em São Paulo e começa a chorar a perda irreparável do ilustre maestro brasileiro. Todos assistiam àquilo tudo e não esboçavam reação, mantendo-se indiferentes, havendo até mesmo quem fosse insolente: “Esse Caetano Veloso puxa um fumo forte”, presepou alguém, ocultamente. Não havia drama no ar. Era um espaço vazio sem conexão com a realidade do Brasil. Decerto porque em sua profunda ignorância e alienação coletiva, desconheciam por completo o Tom, a Bossa e a palhoça.

Quanto a mim, tinha a exata dimensão do momento trágico que acabara de se abater sobre todos – incluso sobre os que o ignoravam, mas que jamais seriam ignorados pelo alcance de sua arte genialmente brasileira; eu sabia o que ele representava, o que me doía profundamente. E do mesmo modo que, mais de 30 anos antes, Caetano asfixiara suas emoções em meio à hostilidade dos militares e à própria dor, eu também chorei por dentro, calado. Até que a lágrima me escapou. 

3 comentários:

Márcio disse...

Material de primeira, escriba! Já falei, e repito, que suas histórias de caserna rendem muito. Mantenha-as sempre vivas por aqui!

O Maltrapa disse...

Hahaha! Maneiro, Márcio! Admito que não me esqueço dessa sua preferência pelo verde-oliva; quando comecei a escrever, pensei em você no ato!

E se no meio tiver uma pitada baiana, tanto quanto melhor, d'accord?

Abraço saudoso deste Maltrapa

Márcio disse...

Bien sûr, Monsieur L'Écrivain!