quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Os Demônios do Sargento Lustosa

"Se queres a Paz, prepara-te para a Guerra" -  é o mantra do Lustosa.
Vinham, naquele fim de tarde, pelas trilhas que margeiam o Lago Paranoá, à procura de uma praiazinha - um lugar para orar. À frente, Afonso puxava os cantos, prontamente acatados pelos companheiros de caminhada.

Eram coisa de seis ou sete rapazes, todos de aparência rústica; roupas feitas de pano cru, e barba e cabelos amarfanhados. Traziam violões e tambores, além de um olhar franciscano perfeitamente harmonizado às alpercatas de couro que calçavam. Na rabeira da fila, Tatiana, uma negona com olhos de noite e a cabeça ornamentada por longos dreads, os seguia em silêncio, mas igualmente inserida à atmosfera ritualística daquela pequena procissão. Iam num passo lento, ao mesmo ritmo do belo lilás-alaranjado que surgia a partir do horizonte, combinando num vívido ocaso, típico evento do Cerrado.

Um ronco longínquo e intercalado se fez ouvir, como o do motor de uma lancha ou moto-serra, mas que logo cessou. Nesse instante, aconchegaram-se numa rodinha feita em torno de um lençol branco, estendido por Tatiana de modo um tanto solene. Enquanto os demais se acomodavam com seus instrumentos, ela, como uma sacerdotisa, dispunha sobre a alvura do pano uma..., duas..., três verdes mãos, cheias de erva-do-norte; maconha da boa, plantada por eles na comunidade em que viviam.

É ela também quem prepara uma primeira tchara, no embalo produzido pelo som da afinação da rapaziada. Fazem algumas preces e dão início aos trabalhos, burni’n it on fire. Logo à primeira baforada, porém, o barulho do motor reaparece, rasgando o ar abruptamente (e agora bem próximo a eles). Nada de lancha ou moto-serra, senão um grupo de motoqueiros da polícia militar: – “Todo mundo parado! A casa caiu!” -, gritou um deles, mais exaltado, e que parecia estar no comando da operação. Atônito, o bando maltrapilho sequer esboçou reação ou tentou malocar o flagrante.

   - Todo mundo com a mãozinha na cabeça, porra!... Dá essa merda, aqui! - berrou, arrancando o baseado das mãos de Tatiana. - Olha só o tamanho desse charuto! E essa montanha de fumo aqui?!... Vão dar festinha? Bando de maconheiro safado!... Vai todo mundo pra DP!

Aquela luz calorosa que inundava o céu de poesia, ora se dissipara por completo, dando lugar a um sinistro lusco-fusco, cheio de faróis, contraluz e silhuetas confusas de policiais grosseiros. A atmosfera de harmonia dera lugar ao tipo de ambiente opressivo que tanto cativa os toscos homens-da-lei, com muita gritaria e humilhação: - Olha pro cabelo dessas porras! – dizia outro – Deve ser puro piolho! Tira essa touca, rapá!!!

   - Ô, cabo, dá um güenta nesses malas; e passa a bolsa dessa cidadã pra cá que eu quero ver o que tem aí dentro! Com um monte negão do lado, só pode ser piranha, essa guria!... – era o Sargento Lustosa dando ordens.

Ouvindo mais essa ofensa, Afonso olhou firme para os olhos do sargento que, confrontado no momento em que esperava submissão, vacilou, interrompendo a gritaria e autorizando, involuntariamente, a fala do crioulo:

   - Ela não é piranha; é nossa irmã, como todos aqui são irmãos... Inclusive o senhor.

    Pego de surpresa pela essência do discurso, Lustosa reagiu:

   - Cuidado com o que fala,“alemão”, pois eu não sou irmão de maconheiro safado, muito menos de bandido!

   - A gente é maconheiro, sim, mas não tem nenhum safado ou bandido aqui, não. Tudo o que a gente consome é fruto do nosso trabalho e da nossa fé...

   - E lá maconheiro tem fé, alemão? Cê cala essa boca que religião é coisa sagrada e cês são tudo vagabundo e pecador! Não tavam aqui fumando maconha? E maconha não é coisa de bandido? Então para de falar merda, cabeludo! – ameaçou, acariciando o coldre do 38 que carregava na cintura, mas logo voltando a se ocupar da bolsa.

Ao abri-la, porém, o sargento Lustosa, evangélico fervoroso, novamente hesitou. Sob a camada de fumo que ainda restava, o militar reconheceu uma Bíblia Sagrada. Por um instante, ficou sem entender nada, mas logo se voltou para Anselmo, furiosamente:

 - O que é que isso tá fazendo aqui, cidadão? Tão fumando a Bíblia, seus putos? Se vocês tiverem queimando fumo com a Palavra do Senhor... Se tiver faltando uma única página dessa Bíblia... Aí, vocês vão ter problemas graves, senhores... Vou apresentar o Inferno pra vocês... – dizia, pausadamente, enquanto folheava o livro sagrado. Mas não faltava nada; tava tudo lá, salmo por salmo, versículo por versículo.

   - Como eu tava dizendo, senhor, a gente tá falando de fé, – completou Anselmo -, e pra nós, fumar maconha não é pecado; pelo contrário, nos aproxima de Jah, nosso Deus. E como a gente sabe que a sociedade não aceita, a gente vem aqui pra longe para não incomodar ninguém.

   - Não fala besteira - reagiu o sargento -, que não tem essa merda de “nosso Deus”; Ele é único! Maconha não tem nada a ver com Deus! E, além de crime previsto em Lei, é pecado!

   - Crime pela lei dos homens, mas sagrado aos olhos de Jah – prosseguiu o rapaz -, e mesmo sendo considerado pecado por muitos cristãos, em Colossenses 3:13, está escrito: “Suportem-se uns aos outros e perdoem as queixas que tiverem uns contra os outros. Perdoem como o Senhor os perdoou.” – sentenciou, para perplexidade dos policiais. Portanto, para nós, ela é sagrada e nos aproxima de Jah... É um instrumento de fortalecimento da espiritualidade Rastafári, que é a nossa religião.

   - Eles tão falando da seita do Bob Marley, sargento: aquele maconheiro americano que canta régui...  – informou um soldado. O comentário não passou despercebido pelo grupo, e todos deixaram escapar o riso represado.

A descontração fora de hora desarmou ainda mais o espevitado Sargento Lustosa, que sentia sua autoridade moral e policial se diluir em meio às contradições que vivenciava. Para fugir à prostração, argüiu, subitamente:

   - E esses instrumentos de macumbeiros? E toda essa massa? Cadê a birita?– disse, apontando para a montanha de erva que contrastava com o pano branco. – Isso por acaso é coisa de gente cristã? Pra mim isso é coisa de traficante!

   - É nossa forma de comunhão, senhor: buscamos um local em meio à natureza para celebrar a vida, compondo músicas de louvor ao nosso Deus e às boas energias do mundo. Não consumimos bebidas alcoólicas e não queremos incomodar ninguém. Trazemos a Bíblia porque nos serve de eterna fonte de inspiração.

Sentindo-se censurado pela acuidade do rapaz, Lustosa contra-atacou entoando um tom ameaçador ao desafiá-los a cantar “uma música sagrada”: - Quero ver se é coisa de Deus, mesmo... Ô, Sidicley, baixa esse rádio seu aí pra gente escutar esses moleques fazendo uma graça! – ordenou com o braço, num gestual fascista. Reza, aí, cabeludo!

Anselmo olhou para Tatiana que até ali, como os demais, permanecera em total e cabisbaixo silêncio. Quando ela abriu a boca, transformando o discurso em melodia, o sargento ficou desconcertado com a beleza de suas palavras. Acompanhada pelos meninos, Tatiana falava da alegria e do júbilo de se fazer o Bem ao próximo como o caminho para honrar a existência humana e a Glória do Senhor na Terra.

Acostumado a maltratar usuários de maconha que freqüentavam aquelas paragens, o empedernido Lustosa se via numa situação original e contraditória, na qual o impulso de sentar a borracha naqueles marginais era, agora, substituído (ou ao menos confundido) pelo de se apiedar e não somente perdoá-los, mas de juntar-se a eles em perfeita comunhão, posto que fossem exemplos de bons cristãos!... Ou não?

Incrédulos, os demais policiais se entreolhavam sem saber exatamente o que fazer, já completamente sem espaço na cena. Notando a desmoralização total da patrulha, o comandante resolveu agir, interrompendo abruptamente a cantoria: - Tá bom, tá bom!... Já deu! Basta! – gritou, calando a todos e fazendo sinal para que seus homens montassem às motos. Fez roncar o motor e saiu em disparada, acompanhado por toda a tropa – mas não sem antes confiscar a tal erva-do-norte e deixar uma palavra amiga: - E da próxima vez, tratem de procurar uma Igreja!

  


foto: joão sassi












4 comentários:

Vítor disse...

Seus escritos são excelentes.
Meu amigo, confesso que todos os domingos, religiosamente, gosto de frequentar o Parque das Garças, ao lado do Clube do Congresso, no final do Lago Norte. É por lá que sinto próximo e à vontade em conversar com Deus. É por lá que presto meu culto à Deus. Ele também anda por aquelas "bandas". Melhor dizendo: Ele está em todo lugar, sem excessão.
Procuro me orientar pelo que consta nas questões números 657, 658 e seguintes de "O Livro dos Espíritos", por Allan Kardec, sem fazer uso de nenhum tipo de erva ou coisa do gênero, aliás, apenas água, pois o calor é intenso.
A Constituição Federal, no artigo 5º, VI, estipula ser inviolável a liberdade de consciência e de crença, assegurando o livre exercício dos cultos religiosos e garantindo, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e as suas liturgias.
Os irmãos em Cristo que foram nominados no escrito têm todo o direito de prestarem culto à Deus, da maneira que lhes aprouverem. Porém, não podemos deixar de lembrar que vivemos em um Estado de Direito (as autoridades políticas e o povo estão sujeitos ao respeito das regras), e pelo que se vê o direito de culto não é absoluto, podendo sofrer restrições, desde que previsto em lei, é claro.
A legislação prevê que o uso (art. 28 da Lei n 11.343/2006) e o tráfico de entorpecente (art. 33 da Lei n 11.343/2006), é um fato tido como ilícito, os quais pela visão do Estado de Direito devem ser punidos.
Lembrando ainda que, no Estado de Direito, os abusos perpetrados pelas autoridades também devem ser punidos (art. 3 da Lei n 4.898/1965).
Me despeço, deixando a seguinte reflexão: http://www.youtube.com/watch?v=A-3FWPeqEvY

vitor disse...

Aonde se lê: excessão.

Leia-se: exceção.

Aqui é "curinthians"!!

O Maltrapa disse...

Grato pela deferência, grande Vitor!

E também pelas informações complementares ao texto. Como rebelde, no entanto, não posso referendá-las em sua totalidade, pois as regras impostas pelo Estado de Direito foram, exatamente como aquelas dispostas na Bíblia, escritas e criadas por homens; portanto, passíveis de vieses, parcialidades e unilateralidades diversas - quando não nas letras, em sua aplicação - o que faz desse nosso mundo um lugar deveras injusto - ainda que lindo por Natureza. Se foi um deus quem o criou ou não, não sei, mas ambos sabemos o quão divino é poder se comunicar com a energia que dele emana.

Abraço forte,

o Maltrapa

Vítor disse...

Obrigado por compartilhar seus sentimentos em relação à divindade.

Acredito que ter fé em Deus é viver em estado de abertura para que Ele aconteça nas nossas vida.

E por viver nesse estado de abertura, observo que Ele tem me ensinado muitas coisas.