sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Inadimplentes

O Governo cuida do Povo que cuida do Carro que...

Um bebê excitado dá um berro cuja reverberação substitui, ainda que momentaneamente, o torpor coletivo então reinante no amplo galpão. Muitos despertam da cochilada. Poucos se incomodam. A mãe ri, incentiva e provoca o filho a novos gritos.

Passam das oito da manhã. Há dezenas de pessoas diante dezenas de guichês vazios, mas nem sinal daqueles que deveriam ocupá-los a fim de poupar o enfado do cidadão. Três funcionários atendem ao público, enquanto um quarto nos olha com descaso, movimentando-se lentamente pela baia.

Boa parte dos presentes está sonolenta e impaciente. Os mais jovens flertam ininterruptamente com tabletes e celulares. Só os mais velhos parecem saber aguardar; há sinais de que a atual geração não aprendeu a ver o tempo passar, o que os faz encarar a vida como um eterno passatempo.

O bebê, agora cansado, começa a chorar, enquanto sofisticados ruídos eletrônicos cruzam o ar. Além das chamadas e das mensagens enviadas, alguém resolve ainda testar as musiquetas que tocam em seu novo celular.

O sujeito ao lado me olha torto. Parece que não entende que há quem ainda use lápis e papel para escrever. Ele estica o olho e tenta decifrar os estranhos códigos com os quais ornamento a folha virgem. Mas não consegue; minha letra é muito feia. Em todos os meus manuscritos, apenas as duas ou três primeiras linhas tem aparência aceitável, o resto é garrancho.

O quarto funcionário, enfim, assume seu guichê. É uma mulher que, a exemplo de seus pares, parece estar na profissão errada. Antes de dar início aos trabalhos, ela lança um pesado olhar de tédio à sua volta, ampliando-o mais ao longe à medida que gira o pescoço, alcançando até mesmo o último infeliz da fila da senha, quase do lado de fora do galpão. Espero não cair em suas mãos.

Cansado de viver na marginalidade, resolvi regularizar a documentação do meu carro. Além das multas, já são passados quatro anos desde que o adquiri, de segunda mão, e o nome que consta no documento não é o meu. Todas as minhas tentativas de fazê-lo, anteriormente, foram vãs. Sempre há contratempos com o DETRAN. É o tipo de angústia que alimenta o sistema, e quando os homens-da-lei chegam, o prejú é certo.

Uma gostosona espevitada atravessa o salão e todos acompanham sua evolução com solícita atenção – menos eu, que sou casado. Com uma aliança no dedo da mão, tento passar por bom cidadão. Lá onde eu moro, o porteiro me chamava de maloqueiro. Depois que meti esse anel de ouro no dedo, o tratamento passou a ser Senhor Maloqueiro.

Os bancos disponíveis estão já apinhados de gente. O povo, recebido sem qualquer fidalguia, vai se aglomerando à porta da autarquia. Para cada um que é atendido, outros dez se somam ao contingente.

O mesmo cidadão que antes bisbilhotava meus escritos, agora cochicha junto ao sujeito a seu lado: - “Isso aqui é uma bagunça! Só tem funcionário preguiçoso... Já começa mal na recepção; repare no crioulinho que botaram lá para distribuir as senhas; isso é gente?” – diz o homem, apontando para um rapaz bem jovem, um pouco magricela e desengonçado, que atendia solicitamente à turba de contribuintes. Pela ótica desse senhor, seu pecado era o de trazer na pele, no rosto, nas roupas e no corpo a marca da pobreza.

Sobre um decrépito balcão de compensado postado logo atrás dos guichês, três ventiladores embelezam o ambiente enquanto evocam o espírito reinante: estão desligados. O ar-condicionado também não avisa se está vivo ou morto. Olho para cima e percebo um grande rombo no teto. Através dele, vê-se o teto antigo, todo estragado e abandonado. Está apenas escondido pelo feio forro de plástico instalado pelo poder público que, para cuidar do público, usa dinheiro público, para lucros terceirizados, naturalmente. O local é a metáfora da política local: realidade maquiada, mas cheia de furos que permitem que a verdade seja revelada.

Já no fim da manhã perdida, cansado de esperar, ouço uma voz mecânica reproduzir meus números favoritos. Quando você vê sua senha piscar no placar, sente-se como se fora contemplado pela sorte grande! Passei em meio ao povo como um eleito (sabe-se lá para quê).

Após alguns sorrisos e boa vontade da moça que me atendeu, ouço dela uma confissão: -“Tenho pesadelos com este trabalho. Acordo no meio da noite e vejo a cara de todo essas pessoas me olhando raivosamente...”. Ela deixa claro que trabalha em condições desumanas, sofrendo fortes pressões psicológicas. Obviamente a responsabilidade não é dela ou de seus colegas. Salvo a pena que senti, recebo de bom grado as orientações sobre o que fazer para ter minha situação regularizada. Há todo um périplo burocrático ainda por realizar, com idas e vindas a este mesmo lugar.

Saindo de lá, tratei de pagar todas as taxas o mais rápido possível e esperei 24 horas “para o dinheiro cair na conta deles”, e então poder acessar o computador para agendar a vistoria obrigatória. Dei placa, dados, chassis, mas a máquina acusou erro, recusando-se a seguir com o preenchimento do formulário. Tentei inúmeras vezes; nada. Sem esse preenchimento, não recebo o boleto, não pago a transferência, não agendo a vistoria, não viro um cidadão idôneo e respeitável.

Se eu quiser deixar de viver à margem da sociedade, vou ter de voltar ao Departamento de Trânsito para fazer algo que, teoricamente, poderia (e deveria) ser feito de casa. E depois voltar novamente para fazer a tal inspeção.

Enquanto programo o meu dia de amanhã, priorizando esta inesperada incursão, escuto o repórter do noticiário local que, pela TV, anuncia: - “a cidade está cheia de blitz para surpreender os inadimplentes. Cuidado, motorista!”.

Implacável, o sistema apenas ri da desgraça da vida moderna.

E pensar que nos sobraria tanto tempo para a felicidade... 



foto: joão sassi

8 comentários:

Márcio disse...

Espero que o motivo da regularização seja passar "la machina" adiante - não vejo sentido em um casal gastar com a manutenção/licenciamento de um segundo carro. Quanto às filas, há muito tenho o hábito de sempre carregar comigo um livro para essas horas. Não converso com ninguém, o que pode me privar de um eventual (e raro) bom papo, mas tampouco me canso de esperar.

Márcio disse...

Opa: macchina!

O Maltrapa disse...

Pois lhe digo, grande Márcio, que esta crônica se iniciara sob o lamentoso tom de um diário. Eis a transcrição literal do primeiro parágrafo (cortado na edição)): "Não acredito que não trouxe um livro para ler! Certamente serão horas, aqui, sentado...".

Quanto ao meu carro, vou mantê-lo porque se recém livrou do IPVA; carro velho tem vantagens!

Grande abraço,

O Maltrapa

João Damasio disse...

Também sempre levo um livro, mas não levando e tendo papel, pode rabiscar coisas ininteligíveis a partir da quarta linha que vem para o blog... haha.

Se não me lembrasse de algumas filas idênticas, mas tão mais sofridas, como as que enfeitam e caracterizam os hospitais públicos, teria pena desse seu dia e de todos que lá estavam.

Acabo de conhecer o blog. Ótima escrita. Seus temas poderiam ser mais alegres e ter um monte de memes para atrair mais massa internética, mas se o fossem eu não o seguiria.

Abraço!
Descaradamasio.

O Maltrapa disse...

Pois é, xará, são os tais males que me fizeram bem; a falta do livro veio a calhar nesse doloroso momento. Certamente a situação na área da saúde é ainda mais catastrófica e indigna - e, talvez, menos inspiradora.

Fico grato pelas deferências a este blog maltrapilho, e prometo não recorrer a memes quaisquer em busca da fama internáutica (até por não saber exatamente o que é...).

Abraço,

O Maltrapa

Ps: "temas alegres" é ótimo! Hahaha!

Eliana Lucena disse...

Corre da blitz, corre da receita, tenta virar cidadão "nos conformes" e aquele eterno sentimento de querer jogar tudo pro alto num sonoro foda-se! Adorei a crônica

O Maltrapa disse...

Eliana,

por coincidência, o DF/TV acaba de mostrar uma reportagem sobre esse tema (filas em autarquias públicas). É algo de vexatória a postura dos responsáveis pela administração pública; parece que estou em 1960, quando tudo em Brasília era precário e funcionava na base do vâmo-lá-que-dá!; porém, havia razões óbvias e plenamente aceitáveis para tal. Mas e agora, 50 anos depois, ainda temos de aceitar o eterno improviso e total descaso pela dignidade cidadã?

Samantha disse...

Gostei muito! A descrição da atmosfera burocrática é ótima! Continue escrevendo.