sábado, 22 de dezembro de 2012

A Bênção do Anjo Guerreiro




Foi nesse momento que meu corpo foi abruptamente lançado pelo ar e, ao tempo em que eu voava sobre o asfalto, pensava comigo no ocorrido: “Um carro me atingiu enquanto eu conversava com uma garota no estacionamento da FUNARTE”.

Eu me lembro muito bem, o dia estava lindo, ensolarado e seco. Um árido, porém belo dia de Domingo.

Tinha em minha adega uma garrafa de uma cachaça de qualidade relativamente boa. Foi um tempo em que experimentei diversas qualidades de cachaça; todas relativamente boas. Não seria capaz de me lembrar do nome de nenhuma delas em especial, senão de seus prazerosos efeitos. Mais ou menos como as mulheres em meus ébrios dias de juventude. Fica na memória a sensação de que foi bom, mesmo que não me lembre muito bem como foi.

Vivendo numa pequena comunidade rural, mas sendo oriundo da urbe, tentava me integrar à ruralidade local estabelecendo qualquer sorte de contato com o meio que me cercava. Beber era uma ótima forma de fazê-lo. Sair caminhando pela vegetação, tendo “visões” ancestrais e me conectando ao chão e ao cheiro das coisas do Cerrado, para então mergulhar num riacho de águas ainda vivas, plenas em bem-estar e energia.

À metade do dia a garrafa já estava metade cheia, metade vazia. Lá fora, sob forte sol, Pablito, um andarilho que por lá perambulava e realizava pequenas empreitadas pelos casarios da comunidade, trabalhava tenazmente com sua enxada. Muito sério, não queria saber da cachaça que eu insistia em oferecer. “Já tive muito problema por causa disso!”.

Na vitrola, um disco raro com antigas cantigas evocadas pelos integrantes do bando de Virgulino Ferreira, o Lampião, para esquecerem-se da solidão que a vida no cangaço lhes propiciava. “Se eu soubesse que chorando/ empacava a sua viagem/ meus olhos eram dois rios/ que não lhe davam passagem...” – e enquanto eu escutava isso, tomava outra talagada, e todo o espírito ficava ainda mais bonito!

Eu bebia apenas para expandir a euforia. Para andar pela casa filosofando, cantando e rindo sozinho. Bebia para me emocionar e por acreditar que a verdade da vida fosse sempre mais bela que realidade fingida.

Tarde adentro, sol a pino, segui bebendo. E da voz seca de um Othon Bastos travestido de guerreiro na forma de cangaceiro que saía do estereofônico, ouvia-se a Oração ao Glorioso São Jorge: Eu andarei vestido e armado com as armas de São Jorge para que meus inimigos, tendo pés, não me alcancem, tendo mãos, não me peguem, tendo olhos, não me vejam, e nem mesmo pensamentos eles possam ter para me fazerem mal. Armas de fogo o meu corpo não alcançarão, facas e lanças se quebrem sem o meu corpo tocar, cordas e correntes se arrebentem sem o meu corpo amarrar. Era Corisco, sequestrado por Glauber, agora em missão especial à Terra do Sol.

Sempre imaginei por onde andaria o Capitão Virgulino àquelas horas. Corisco lá, fazendo o maior sermão que o Cinema Novo jamais escutara, e eu me perguntando: “Será que o Lamparina liberou ele dos assaltos?”.

Escutei a oração por inúmeras e repetidas vezes. Não sendo um cristão-novo ou tampouco convertido, punha fé nas palavras. Pablito então surgiu de supetão à janela e me advertiu, bronqueado: - Você não devia ouvir essas coisas assim [bêbado]. Isso é coisa do Sagrado. Tem que estar em contato com a força...

Referia-se por certo à ayahuasca, da qual era contumaz tomador. – São diferentes formas de senti-la, redargüi.

E, de fato, o que eu sentia era sublime, lindo! Não havia como ser desrespeitoso se o que eu sentia era espiritualmente tão poderoso. Deixei isso claro. Eu estava feliz. E protegido.

O sol ia se pondo quando resolvi dar uma volta pela cidade. De lá de cima do morro, Brasília brilhava!...

Poucas horas mais tarde, meu corpo estaria estendido no asfalto, a alguns metros de uma mulher que jazia inerte, com o rosto voltado para o chão. Uma cena terrificante. Acabáramos de nos conhecer. Não houve sequer como saber seu nome, mas apenas tempo de lhe roubar um beijo e adverti-la: - É perigoso ficar aqui...

Terminado o lançamento, caí num rolamento sensacional, evitando qualquer ferimento; “... e nem mesmo pensamentos eles possam ter para me fazerem mal...”. Levantei os olhos e vi o motorista vindo em nossa direção, desesperado, rua acima. Mais próximo a mim, ela. Estava lá, jogada, sem a proteção necessária; decerto ferida.

Num átimo de segundo eu a segurava em meu colo, como um Romeu que vê Julieta semimortificada. Mas eu não pensava em suicídio, e sim em reanimá-la. Após um mórbido instante, vi seus olhos se abrirem; tão docemente como minutos atrás, quando nossos olhares se cruzaram e eu a cortejava. Ela não sabia de nada, a inocente. Encontrava-se num mundo lindo, totalmente lindo, perfeitamente lindo. Ela, que tinha uma clavícula fraturada e a face parcialmente arrebentada, estava muito feliz e não sabia de nada...

Clamei por socorro! Muita gente acudiu e começou a nos rodear; paramédicos, bombeiros, populares e policiais, além do motorista em pânico. “Qual o nome dela”, quis saber alguém:

   - O nome dela? Não sei. Acabamos de nos conhecer, amigo. Só estávamos nos beijando...

   - Da maca para a ambulância, rápido! – emendou o bombeiro, enquanto os demais retiravam a menina do local.

   - Esperaí! Também fui atropelado; vou com ela na ambulância!

A sirene gritava e o paramédico que a atendia agia: - Você se lembra do seu nome? Endereço? Nome da mãe? – e ela me olhava, com o rosto parcialmente ensangüentado, como se não estivesse acontecendo nada.

Fomos literalmente desovados no setor de emergência do Hospital de Base de Brasília. Em meio ao caos, muitos gemidos coletivos, madrugada adentro. Senti a dor alheia, o descaso, a sujeira e o suplício; mimos oferecidos pelo estado ao pobre cidadão convalescente. Raio-X quebrado. Necessidade de ir ao banheiro e o corpo quebrantado. Priscila sofreu – era este o seu nome, afinal -, mas sentiu cada gesto do carinho por mim dispensado.

Na manhã seguinte, sua família enfim apareceu para resgatá-la. Queriam levá-la a um hospital de gente. Sua mãe, nada agradecida, olhou-me de cima a baixo, enojada, talvez por conta da minha barba desgrenhada ou por conta do bafo da cachaçada; quem sabe?

Quanto à Priscila, sentada no banco de trás e calada, jurava que havia visto um anjo da guarda.

foto: joão sassi

4 comentários:

Márcio disse...

Acho que ficaria do caralho se você começasse com o trecho:

Foi nesse momento que meu corpo foi abruptamente lançado pelo ar e, ao tempo em que eu voava sobre o asfalto, pensava comigo no ocorrido: “Um carro me atingiu enquanto eu conversava com uma garota no estacionamento ..."

E depois fosse voltando no tempo.

O Maltrapa disse...

Estou inteiramente de acordo, Márcio. A mudança abrupta de cenário, do meio para o final do texto, revela essa tentativa parcialmente bem sucedida de criar uma cena de tensão surpresa. O que eu queria ter feito, no entanto, é exatamente o que você sugeriu; ficou, de fato, ainda mais interessante. Fica como presente de Natal!

Hô-hô-hôu do Maltrapa!

Ludimilando por aí... disse...

O encanto...a paixão... anestesiaram as dores de Priscila.
Se ela pudesse colocar em um frasco acho que distribuiria ao mundo todo.
Esse texto parece um sonho que tive. Rsrsrsrsr...

LudLu disse...

Priscila também purpurinaria mais esse texto, certeza!!!

Priscila sabia o que sentia naquele dia e foi bombardeada quando encontrava com a mais bela pupila de sua vida.