sexta-feira, 9 de abril de 2010

Capital Fria e Aconchegante


Entro na pastelaria.

Raramente vou lá, embora o pastel seja realmente muito bom. O que estraga são os proprietários, pois pensam muito no lucro, esquecendo-se da educação, especialmente aquela senhora que tá sempre de cara azeda; ô, desgraça!

Fica sempre no caixa, a cuidar da manipulação das notinhas, função que exerce de olhos voltados para baixo, a fim de estar sempre a guardá-las, suponho. É do tipo que não fala nem “de nada”.

Felizmente ela não estava, mas uma sorridente assistente, com touquinha branca na cabeça e olhinhos de índia, meio cafuza. É um contraponto perfeito.

Pedi apenas um pastel de queijo e paguei à vista, em dinheiro; RS$2,75. Fiquei devendo 5 centavos. Se fosse a velha megera ia ter cara feia.

Fui me sentar no balcão, deixando as mesas lá de fora para o casal que se beija e namora. E fiquei observando um senhor de seus 70 anos que estava logo atrás de mim, na fila do caixa.

Roupa passada, cabelos (ainda que poucos) penteados para trás e óculos de aros finos e dourados. Com gestos suaves, quase trêmulos, pagou pelo pedido e veio se sentar junto a mim: - “Vamos comer um pastel?”, emendou. - "Com certeza!..." - retruquei. Ele arrastou o banco para mais perto ainda, evocando uma intimidade que inicialmente me preocupou (de leve).

- “Eu gosto muito de pastel. Pastel é bom demais, não é não?” – perguntou ele, esfregando as mãos enquanto acompanhávamos, atentos, à pasteleira manufaturando nosso lanche. Virei e lhe respondi que sim, que eu achava que o pastel era um alimento especial feito artesanalmente... Mas ele não tirava os olhos da cozinheira, e esta, da massa, esticando-a, dobrando-a no ar, esticando uma vez mais, e novamente, até fazer o talho certo, cobrindo-o de mozzarella, pondo sobre ele nova lâmina de massa, para então espremer-lhe as bordas - coisa que toda criança gosta de fazer -para, por fim, mergulhá-lo em óleo fervente, amarelo-gasolina.

- “É especial porque a gente pode ver como ele é feito, acompanhar o ritmo... E ver como está a energia da pasteleira.” –acrescentei.

- “É verdade. Eu adoro a “Pastelino”, em Fortaleza... Você conhece Fortaleza?”
- “Não, nunca estive lá... Mas o senhor não tem sotaque de cearense; parece mais carioca...”
- “Sou carioca, de São Cristóvão”
- “Que revelou o Ronaldo Gordo...”
- “Exato!... Sou lá de São Cristóvão!
- “É a estação da torcida do Flamengo em dia de clássico.
- “Pois é... Mas comprei um terreno lá em Fortaleza; coisa linda!!!
- “Que bom...”
- “Mas moro aqui há mais de 30 anos! Desde 1977”
- “Ganhei do senhor; estou aqui desde 75”.
- “Ah...”

Meu pastel chegou primeiro e eu acabei queimando o beiço com o vapor quente.

O São Cristóvão não ficou de 'olho-gordo' no meu pastel, mas continuava a esfregar as mãos, olhando atentamente para os seus que, sendo retirados do óleo, iam imediatamente sendo postos na cestinha enguardanapada. Foi-lhe servido junto com um caldo-de-cana bem gelado.

Como tenho eu 'olho-gordo', pedi um caldo para mim também. E outro pastel:


– “Pode pôr tomate?"

- “Sim. Orégano?”

– “Orégano.”

Uma senhora rechonchuda, mais velha que eu e mais nova que ele, sentou-se ao seu lado, junto ao balcão. Enquanto isso, ele abocanhava seu pastel com vontade, esticando o queijo derretido até o limite, erguendo os braços e envergando o corpo para trás, até quase cair do banco, sem conseguir arrebentar aquela fita elástica. Com a mesma suavidade, avançava com a boca sobre o queijo, como se faz com um fio de macarrão. E continuou:
- “Brasília é horrível, mas foi aqui que ganhei dinheiro!”

Virou-se para a senhora que acabara de se sentar e perguntou:
- “A senhora, de onde é?”
- “Eu?” – assustou-se – “Sou de Minas...”
- “Então; Brasília não é horrível?” – insistiu ele.
- “É... Mais ou menos, né? É um pouco estranha...” – desculpava-se, olhando para mim, buscando algum consentimento.

- "É uma cidade compartimentada pelo poder aquisitivo de cada cidadão, né?” – completei.
- “É... Exatamente! É assim mesmo!" - empolgou-se ela, revelando um ranço qualquer; possivelmente por sentir-se, veladamente, vítima da discriminação sócio-cultural presente na Capital.
-"Uma coisa horrível!...” - prosseguiu o senhor, indignado. - “Brasília, não tem cultura! Qual a tradição daqui?”
- “Roubar, talvez....” – retruquei.
- “Mas quem rouba vem de fora!” – defendeu a mineira.
- “Eu ganhei muito dinheiro em Brasília...” – revelou ele, enquanto partia já para o terceiro pastel.
- “Roubando? Hehehe...” – provoquei.
- “Nããão; eu vim do Rio De Janeiro! Àquela época, davam tudo pra gente... Facilitavam nossa vida... Mas isso aqui é horrível!”
- “O problema é que as pessoas aqui são muito frias," – disse ela – "e ninguém conversa com estranhos. "
- “É difícil, mas acontece..." - E naquele exato instante, nos entreolhamos, já sem o pudor com o qual se encaram os desconhecidos; todos com seus pasteizinhos à mão, escorados numa bancada em proximidade física e emocional. Estávamos à vontade.

Ela então arregalou os olhos e constatou: - "Vocês também não se conhecem!", para então soltar uma gargalhada altíssima, assustando às funcionárias.

O papo prosseguiu amigavelmente e eu, com uma tirada ou outra, ora arrancava boas risadas dela, ora provocava o senhor guloso. Que se mostrou satisfeitíssimo com nossa conversa, tendo se despedido efusivamente. As atendentes se viravam em sorrisinhos e admirações, e comentavam entre si algum pensamento. A senhora mineira parecia realizada, de tão alegre, comia seu pastel sem qualquer culpa.

Despedi-me com um aceno às moças e, antes de sair, falei à mineirinha, olhando nos olhos dela e percebendo um brilho de renovação: - “Mesmo sendo fria e estranha, sempre vai haver pessoas as quais vale a pena conhecer."

Saí de lá eu também me sentindo muito bem.

11 comentários:

Amarilis disse...

Ta escrevendo cada vez melhor, João. Parabéns! Beijo.

O Maltrapa disse...

Grazie tanto, Amarilis! Tenho me esforçado para "dar o melhor de si" - é dando que se recebe, hehehe...

Beijos de Domingo (um dia lindo)!

O Maltrapa

Ps: Mengo 4x0 Bacalhau

Celamar Maione disse...

Sim, sempre vale a pena conhecer pessoas diferentes. Algumas tem valor. Outras não.
Fiquei com vontade de comer pastel quentinho com caldo de cana. Delícia !

Valeu.

Beijão
Celamar

Dias de Setembro disse...

Oi João,

ADOREI o texto sobre irmãos e achei Amanda uma fofa!
Também tenho um xodó grande pelos meus 4 irmãos, criaturas com quem estar, independentemente de afinidades já é motivo pra estar feliz...
Quanto à famosa "frieza" de Brasília, acho que os papos em pastelaria, botequins ajuda a "esquentá-la" um pouco, mas tudo isso acaba sendo tão superficial, rápido, passageiro que até o seu texto tem um quê de melancólico e sem aquele seu brilho de costume... beijo, Tita

Anônimo disse...

João, bom texto. Sempre vale a pena conhecer pessoas e isso só se torna superficial, rápido e passageiro quando não nos permitimos ou encontramos pessoas que tbm não permitem.
Saudades!
Beijos
Laura

O Maltrapa disse...

Tita, Laura e Celamar,

Acho que os comentários de vocês se complementam!

Se, por um lado, a frieza atávica da cidade não nos estimula ao convívio pleno, há de se alcançar maneiras alternativas de interação social. Certamente não fiquei amigo do casal da pastelaria, mas quando eu voltar lá, se porventura os reencontrar, é certo que haverá já uma atmosfera propícia a uma aproximação natural; é aquela estória de se perguntar: "Estou construindo mais pontes ou muros?"...

beijo na três!!! (Uau!)

O Maltrapa

Roseane z disse...

É assim mesmo como vc. descreveu.As pessoas usam desse "mote" para estabelecer um papinho, um contato e , na , grande maioria das vezes, uma cantada bem descolada, afinal quem não tem simpatia por um pobre gatinho solitário?Essas gags são usadas desde tempos imemoriais........Tá com cara de chuva, né!, É a primeira vez que vc. vem aqui?, ou, O Lula é um...........!O Fato é que gente precisa de gente, em qualquer lugar do mundo.Brasília não é diferente.Maravilhosamente fria e aconchegante.Bbjjiinnss da Z.

O Maltrapa disse...

Senti firmeza, Ms. Z! Vai um pastel aí? Quentinho, assim, de noite, fica melhor ainda! Se acompanhado de um vinho, então... :p

Beijão,

O Maltrapa

Eliane Lignelli disse...

Delícia, João! Adorei! Bem escrito demais! Beijo,

Roseane z disse...

Mudando de p... p/ ca...., voce , como um relativo conhecedor da alma feminina ,já pensou em escrever sobre as lagartas que viraram ou viirarao borboletas, ou das borboletas, que , apesar dos pesares ,continuam lagartas?Alguma coisa assim... na contramão da auto- ajuda, politicamente incorreta....instintiva, diria eu! Por exemplo, observe uma mulher por alguns dias e passe suas impressões sobre a alma lagarta-borboleta.Fico curiosa em saber seus olhares.bbbjjiinns da Z.

O Maltrapa disse...

Cara Ms. Z, adorei a distinção; principalmente do "relativo conhececdor", hahaha!!!

Gostei também da sugestão! :)

Esperemos, pois, a ver se lagartas borboleteiam minha imaginação...

Beijão,

O Maltrapa

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Bem-vinda, Eliane!

Beijo grande,

O Maltrapa