sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Um Fato Novo


Ao cair da noite, na última terça-feira, após uma bela jornada de trabalhos e devaneios, senti necessidade de escrever. Vontade latente. Mas também sentia vontade de ver a vida passar; vontade carente.

Poderia seguir para casa, mas teria de encarar o trânsito do rush até alcançar a quietude do meu Ninho. E encarar o trânsito é coisa que não me faz bem. Não sei o que acho pior; trânsito ou barata. Ando dez, quinze quilômetros a mais, mas fujo de engarrafamentos! E assim, com essa boa desculpa, liguei o carro com alma de poeta - buscaria a boemia para encontrar inspiração.

Adoro encarar a noite com duas ou três garrafas entornadas e umas tantas páginas bem escritas. Quando isso acontece, a noite é mais bem-vinda, pois a recebo com alma vencedora. Se for o caso de pedir a quarta garrafa, melhor guardar os manuscritos, pois a qualidade do texto tende a cair vertiginosamente...

Por ainda ser relativamente cedo, o local estava tranqüilo. Dos muitos bares à disposição, escolhi um com uma boa mesa de madeira e com boa iluminação. Serviria, ainda que uma luz vermelha ao fundo do balcão lhe desse um ar meio aviadado demais para os meus intentos. Pedi uma cerveja e coloquei o caderno sobre a mesa. E, enquanto acariciava a barba, comecei a pensar no que escreveria... “Pedro!!!”, falou o rapaz na mesa ao lado. Era Paulo, um cara que namorou minha irmã há uns 20 anos.

Meu irmão, Pedro, tem nariz de ponta fina e cabelo de Blanquinho*: preto, ajeitadinho, de ladinho. Dizem, lá em casa, que ele é filho do leiteiro ou do vizinho, já que os outros irmãos tem “narizinho” mais abatatado e cabelos castanhos. Por mais que Pedro seja uma pessoa completamente diferente de mim, Paulo só me chama assim. E, pior, não é de propósito!

Após dar aquele cumprimento amarelo, voltei à barba, ao texto e aos devaneios... Queria um fato novo. Mas é sempre assim: quando só penso, não escrevo; mas só escrevo enquanto penso. Sou como minha amiga Áurea, que durante nossas reuniões de trabalho, faz deliciosos rabiscos multicoloridos e bem ornamentados em seu caderno de rascunhos. Todos fazendo cara de interessados e preocupados, enquanto ela fica lá, como uma Poliana, sorrindo para si mesma enquanto contorce a cabeça acompanhando os barrocos traços que caracterizam sua personalidade. Diz ela que é para se concentrar melhor no que os outros estão dizendo. Eu também sou assim, pois só me concentro enquanto faço. Quando só me concentro, acabo me concentrando no que não devo, e nada fazendo...

Então eu pensava e pensava, mas no papel, nada aparecia; natural, posto que eu nada escrevia. E decidi fazer o fundamental: começar! Não havia, afinal, necessidade de algo novo acontecer em minha vida para que se justificasse fazer um relato. O novo surge a partir do momento em que a pena começa a correr; é quando minha alma se renova

Uma a uma, as idéias foram surgindo, enquanto eu, sem dó nem piedade, com elas brincava e também as refutava. Parágrafos inteiros riscados, reescritos, escrutinados; uma diversão total! Coisa de gente pervertida.

Numa delas, embarquei! Queria falar da conquista; não das minhas, mas nas dos outros. Refletir sobre a importância e a delícia de ser o alvo e ceder aos floreios de uma dama ou cavalheiro, gentilmente, por inteiro.

E de tão empolgado que fiquei, abri mão da loira e me piquei. Queria colocar tudo ao vivo, via Maltrapa. Dividir com a tal horda a revigorante sensação de ser conquistado!

No caminho de volta, pensava nas passagens recém-escritas como quem saboreia a comida preferida. Eu olhava para o caderno, jogado no banco, e enxergava uma deliciosa marmita! Era gostoso pensar no que sairia dali de dentro!

Passei pelo Portal do Urubu, adentrando o breu da noite. Estrada de terra batida; chão duro, esburacado. Chegar em casa, no meio do mato, eu gosto. É sempre um reencontro comigo mesmo.

Antes mesmo de estacionar o carro. Simba apareceu saltitante à minha frente, como se sentisse o aroma da minha marmita. Nunca o vi assim. Desci do carro e ele continuava muito excitado. Ousou até ficar de pé, empoeirando minha roupa! Isso não se faz, Simba...

Caminhei pelo jardim e cheguei à varanda: a porta estava aberta!...

A canga, que sempre deixo como cortina, presa à porta, agora balançava voluptuosamente junto à brisa da noite, deixando transparecer o agradável amarelo do abajur que vinha lá de dentro. Automaticamente, entendi tudo. Não havia mais lépitópi, conjunto de som ou de DVD, e nem celulóide ou qualquer outro aparelho eletrônico, pois a casa fora arrombada.

Foi delicado o gatuno. Entrou manso, saiu calado. Não desarrumou meu mocó. Parecia até mesmo mais arrumado que antes. Definitivamente, o ambiente estava mais “limpo”. Deixou somente portas e gavetas abertas, mas não fez balbúrdia, nem lançou meus trapos ao chão; foi pianinho, educado.

Admirei o garbo: “agiu na maciota, o malandro...”.

E me voltei novamente para minha grande mesa de madeira – aquela em que me sinto Tomás Antônio Gonzaga -, e a vi vazia, sem meu computador (meus textos, minhas fotos!...), e me senti como um pastor sem ovelhas.

Sentei-me... “Tudo perdido, descartado por quaisquer 30 dinheiros, à primeira esquina, ou por qualquer pedra de crack... Gente ignara...”.

Minha empolgação dera lugar à frustração. Movimentos inesperados, fatos novos; assim é o bucolismo contemporâneo.



16 comentários:

Márcio disse...

PQP - de novo???!!! Rapaz, sem terror, respirando fundo e de cabeça fria, pergunto: será que não é hora de você botar na balança os prós e os contras de morar no Urubu? Sei de sua identificação com o lugar, mas não concebo essa convivência de mágica e violência. Viver com medo é uma merda, mas tem horas que simplesmente não dá para ignorar certos perigos, e certamente não me refiro à perda de bens materiais. Para terminar, uma perguntinha de Sherlock: as outras casas da área também já foram assaltadas mais de uma vez ou só você é o felizardo? Abraços solidários!

Anônimo disse...

Poxa, que chato, que triste! Esse mundo é uma merda mesmo. Só com muita disposição, humor, filosofia e amor pra ver por outro lado.
So so sorry. Seu amigo Márcio parece sensato. Pense bem, nêgo!

Ilíada disse...

Se Gandhi estivesse aqui certamente diria que Deus está testando sua fé.
Bom, estou a anos luz do Mahatma, mas sou obrigada a lhe dizer: Sua fé está sendo testada, meu amigo!

Não é um teste a sua fé num Deus qualquer, numa religião, mas sim, um teste a sua fé na humanidade.

É duro. Dói. Nos faz chorar. Já passei por testes semelhantes em minha curta vida. Nosso primeiro impulso é ser prático: - Bicho, vou-me embora pra Pasárgada de um apartamento e nunca mais passar por isso!

Lhe digo, não adianta. O apartamento não vai lhe assegurar a segurança. A violência está em toda parte, em todo lugar, em todo mundo. O mundo está violento, a vida se tornou violenta, o ser humano está violento. Não é apenas uma violência física, que atinge a matéria, que leva nossos laptops, nossos aparelhos de som e DVD. É uma violência à nossas almas, às nossas crenças, a nossa dignidade. A contemporaneidade está roubando as nossas utopias e isso é a maior de todas as violências que o homem poderia nos submeter.

Poderia aqui discorrer sobre algumas possibilidades de aumento da segurança de sua residência, alarmes, segurança privada, travas, enfim... Por outro lado, prefiro lhe dizer para não desistir. Para continuar acreditando. Parece loucura, coisa de hippie, coisa de gente fora da realidade. Mas é sério... Busque alternativas sim, daquelas que foram criadas pelo mundo que vigia e puni, mas não perca a ternura, não endureça. Já tem muitos corações endurecidos para que essa legião seja aumentada.

Precisa-se de gente com ternura do outro lado.

Fica com Deus.
Flavinha

O Maltrapa disse...

Contreiras, Anônimo e Flávia,

Acho que todos tem razão no que dizem; cada um dentro de uma abordagem específica.

Pensar se é hora de sair, filosofar sobre o amor que sinto pela humanidade, testando meus limites; tudo tem a ver com o que rolou.

Eu, dentro da minha lógica, tento concatenar minhas sensibilidades a ver se recebo ondas de lucidez. Partir, ficar, resistir, ir? Não sei ainda. Mas é fato que não endureço o coração.

Sem amor, não vivo.

Agradeço a solidariedade de todos.

O Maltrapa

Ps: no aniversário do ano que vem, nem precisarão me perguntar o que vou querer ganhar. Hahahaha!!!

yan disse...

carai ! de novo?

quem sabe faz a hora e não espera acontecer...

CausosContosPoesia&Sol disse...

Jonjon, meu amado...
Acho que foi lhe dado um sinal. E sim, a humanidade é uma "coisa. Mas a pergunta que não quer calar é: até quando vc vai ficar montando casa pra malandro safado? Frustrado? Vc tinha que estar indignado... è um absurdo... Ninguém lá, vê nenhum movimento estranho?
Apesar de tudo, invejo sua disposição e esperança na raça humana, mas reflita qto ao Urubú.
Estou aqui... e amo vc.

Amarilis disse...

Oi João, pelo relato inicial, imaginei um final diferente pra sua história. Que vc seria alvo dos floreios de uma dama, iluminada pela luz do abajour, te esperando com uma surpresa. Mas surpresas são assim, sempre surpresas...

A estratégia de guerra na cidade de onde eu venho é ficar amigo dos vizinhos - pra que eles ajudem a cuidar a sua casa...

Espero que encontre uma boa saída e logo a paz se restabeleça. Beijo.

LudiCura disse...

Para o melhor texto, a pior contexto.
O dia dos fatos, fez todos esses parágrafos sensíveis...
parece até que o Maltrapa os esperava...
Lia empolgadamente para Otávio, quando fui murchando, murchando e por fim... calei-me a pensar...
Estou ainda a pensar...
onde estará as idéias que foram mastigadas pela realidade???
Procure-as, retire o véu e mostre toda nudez de tuas palavras. Ande!!
Ainda a pensar...
Onde estará??? ...

O Maltrapa disse...

Inaê e Contreiras, para vocês que deram uma de Sherlock, informo que não fui o único alvo do meliante, pois um outro João - o de Deus -, vizinho meu, também foi atacado.

De todo modo, o cuidado com que o pelintra cuidou de minhas coisas me dá a ter a certeza de que o conheço. Nenhum ladrão teria tanta delicadeza em furtar objetos; nada foi revirado, rasgado, cortado, amassado ou maltratado.

Enfim, é o caso de se repensar esta passagem por esse ninho...

O Maltrapa

O Maltrapa disse...

Amarilis, Houve quem imaginasse o mesmo que você em relação ao desfecho do texto, e até quem reclamasse do final (como se fosse culpa minha!).

O fato é que, baseado nesse tipo de comentário (frustração do leitor), só posso concluir que passei muito bem minha própria frustração a vocês (o que não deixa de ser salutar...).

De todo modo, agradeço muito sua força e boas energias; tudo vai melhorar.

Beijão

O Maltrapa



___________________________________


Lud Lu! Tô indo pra reunião! Já te escrevo!

beijão

O Maltrapa

Tita disse...

Nossa, João, como você escreve lindo!!!
Sem palavras pelo que aconteceu com você, eu, que também li o texto ávida por uma história repleta de conquistas e sedução, me deparo com esse final trágico...
De todo modo, já associei tanto sua vida com o Ninho que fico pensando como será o blog sem ele.
Enfim, de tudo, o que achei mais triste mesmo foi a “perda” do computador com os seus textos e fotos. Muito, muito triste!
Beijo, Tita

O Maltrapa disse...

Pois é, Tita, troppo triste!!!

Mas, vida que segue, reflexões que vem, enfim...

Um fator importante nessa estória toda é percebermos o fim de certos ciclos da alma, tal qual o fim de uma vida, que tanto teimamos em temer.

O Ninho é onde eu pousar.

Beijão,

O Maltrapa

Roseane z disse...

-Futilezas ,Maltrapa!!!!!!Com todo respeito á sua frustação,"oscara" não levaram nada que não possa ser devidamente recuperado!!!!!! A Rita levou seu sorriso?Não?Então tá valendo!!A despeito dos floreios com que manejas o florete, vi , lá dentro, bem na "menina dos olhos",um bebê chorão!!!!

O Maltrapa disse...

São futilezas que, de recorrentes, interferem na beleza das cousas. Não foi a primeira incursão feita por outrem em terras minhas, Ms. Z, mas a segunda, em 10 meses.

Da última vez, muitas perdas materiais; desta feita, porém, fotos que não são materializáveis por um sorriso qualquer...

O Maltrapa

Roseane z disse...

Caro Maltrapa, perdoe-me a insensibilidade do comentario.Não tive intenção de fazer pouco do ocorrido, mas sim minimizá-lo para que não tomasse uma proporção tão infeliz.Não tive má intenção, repito,mas como de boas intenções , o inferno está cheio, faço minha mea culpa , pego minha vassoura e barganho minha alma com o Diabo para que vc. recupere seus sorrisos.

O Maltrapa disse...

Com o Diabo?!... Puxa, vida, tô começando a achar que esse sorriso vai me sair meio caro... Mas, enfim; trato feito!

Sempre,

O Maltrapa