sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Frugal Manhã Dominical

Ao acordar, ele sentiu logo uma alegria tremenda. Ela, ao seu lado, ainda dormia e sequer se movia.

Logo, correu para a sala, escancarando as cortinas da varanda, donde avistava toda a razão daquele bem-estar; oh, gloriosa manhã de domingo!

Um sem-número de pensamentos lhe invadia a mente. Havia muito que se fazer. A vontade era de correr à casa de pessoas conhecidas, despertando-as com beijos, sorrisos e piadas, mas isso demandaria muito tempo. Amar sempre demanda tempo.

Mesmo que não houvesse um lago ao horizonte, cujas ondulações produzissem brilhos de um sol nascente, ainda assim; ainda que não se projetasse aos seus olhos um céu duma cor azul-anil, quase cristalina, e em sua face, uma brisa tão menina, mesmo assim, tudo lhe pareceria perfeito, posto que a beleza viesse de dentro, do fundo do peito.

O ranger do chão acusa a companheira, que, docemente, reclama. Ela, com aquela cara que todo mundo gosta, faz bico pela sua ausência na cama. Não é boba. Gosta dos seus dengos e dos seus sorrisos, e diverte-se com suas piadas matinais. Aliás, costuma abandonar os lençóis às gargalhadas e, quase sempre, inteiramente beijada.

Ele cede, com prazer, por prazer...

Após novo despertar, a fome. Tantas idéias surgem que fica a impressão de que o domingo não é um dia, senão muitos: café-da-manhã na padoca, caminhada descompromissada pelo parque, banho de cachoeira... Parece que só existem coisas boas a serem realizadas.

Talvez, aí esteja o segredo. Ele não entende o funcionamento do tempo e sempre busca, dentro de si, o tempo necessário para fazer o que gosta. Quando não se é domingo, esse tempo não existe, o que complica muito sua existência. Quando se é, sente-se senhor de todo o tempo do mundo, mesmo sabendo que a dimensão dum domingo seja mera aparência.

Ela, ao contrário, parece ter a chave do segredo temporal. Faz tudo ao seu tempo, com a leveza de quem sabe o tempo certo das coisas. Num minuto, está de pé. Noutro, está banhada. Linda. Cheirosa. De bolsinha a tira-colo, bem arranjada, de camisa arejada, shortinhos brancos e sandálias delicadas. Não carece de maquiagem. Tem brilho próprio.

Ele, sempre o primeiro a acordar e o último a se aprontar, diverte-se enquanto o tempo passa:

- “Tá pronta, neguinha?... Vâmo logo!...”
- “Tô aqui, lindo, na porta de casa...”
- “Ah, assim é melhor!...” -, e ri, no seu íntimo, “hehehe...”.

E, logo, desconversa, falando das muitas coisas que fervilham em sua imaginação. São tantos os assuntos que quase nenhum tem um desfecho. Ele é como a criança que lambuza os dedos de chocolate para comer mais quando o seu acabar. Mais do mesmo. O assunto, entre eles, sempre volta, renovado. Talvez, por isso riem tanto, e se beijem mais ainda, lambuzando-se a todo instante.

Mas não há tempo que resista ao seu tempo. Ele demora. Enrola. Mas o faz com charme, com jeito; ela adora!

O escovar dos dentes, feito pela casa, morosamente, por entre falas, perdigotos e idéias sensacionais. O dentista já lhe avisou que duas escovadas de 5 minutos rendem mais que uma de 10. Pelo que se conclui: apesar de entender de bocas, o dito profissional é malversado nas minúcias do sexo. E assim, vai ele, demorando o mais que pode, contrariando até ordens médicas...

Por fim, saem.

No elevador, sempre um reencontro com a adolescência, quando qualquer lugar não é um lugar qualquer. Para o bem da vida, não havia câmeras que os pudesse censurar.

À saída da portaria, eventuais moradores percebem a presença de um algo mais no sorriso do casal, que segue, num caminhar descompromissado. Vão a pé, pois domingo não combina com carro.

Ao chegarem, com uma fome de anteontem, escolhem a mesa e, já sorrindo à atendente, emendam, “O de sempre, por favor”. A mocinha fala que sabe o que é, mas sempre pergunta o que realmente se quer.

Enquanto esperam, saboreiam o jornal. Nunca falaram abertamente, mas adoram ler o jornal a dois. Ele quer saber do futebol, mas sempre passa os olhos pela primeira página, a fim de verificar se há algo que mereça atenção prévia. Discutem um ou dois tópicos e voltam-se para suas leituras. Adoram ler.

Num segundo, ela já está absorvida. Já ele, concentra-se menos. Gosta muito de observar quem passa ou quem fica. E projeta, nos outros, o bem-estar que sente. Apesar de sentir-se bem, contudo, não se sente bem entre os presentes. Sente-se diferente; talvez, mais livre.

Vê algumas caras fechadas e vê gente que não se fala. Gente que reclama e fuma cigarro. Parece até que não gostam do domingo.

Espichando a visão, alcança o sol, e com ele, as mulheres que passam. Não precisa desconversar. A companheira sabe que ele a tudo vê, e gosta muito do jeito que ele vê as coisas. Ele sabe que ela sabe, e também gosta muito do jeito que ela sabe das coisas.

E por entre pernas, rebolados e bumbuns, ele, maliciosamente, se diverte, imaginando os distintos despertares de cada uma delas... E olha para sua parceira, cúmplice de suas aventuras, mandando-lhe um beijo mental, por todo o carinho e cumplicidade.

Volta a atendente, sempre espantada com as piadas dele, a desculpar-se pela demora: “É que estou só eu e mais três novatas!”, já lhes servindo o desjejum: suco de laranja fresca, misto-quente e pingado – para ela, escuro; para ele, claro.

O jornal perde o encanto. A refeição parece lhes trazer muito mais vigor e lucidez que as informações de uma sociedade pouco amada.

Terminam quase à mesma hora. Ela, um pouco antes. Ele tem a gula nos olhos, mas ela é mais comilona. Apesar disso, sempre estranha quando ele, achando-se o cúmulo do requinte, mergulha o último pedaço de pão no café-com-leite; faz cara de quem não
entende.

Barriga cheia, coração contente.

Recolocam os óculos escuros e se levantam para ir ao Caixa.

Ele adora que o cálculo seja feito para, só então, advertir: “E tem também o Correio Braziliense...”, para então escutar a quantia final. Após receberem palavras de agradecimento por parte do comerciante, despedem-se.

Atravessando a rua e trazendo-a pelas mãos, ele diz:

- A conta sempre dá 17; hoje deu 16.
- É verdade... -, responde ela, atenta aos carros.

Do outro lado, pára , olhando para ela e, como se houvesse encontrado um ruído na doce melodia daquela manhã, diz:

- “Ou ele nos rouba toda semana, ou nós o roubamos nesta, hehehe!...”


Aquela mísera diferença quebrou-lhes a rotina... Mas nada que lhes roubasse o intenso prazer escondido numa frugal manhã dominical.

14 comentários:

Marcya disse...

Já li trinta e cinco vezes e não consigo achar um defeito. Nem a conta, que se fingiu de errada, só pra fazer você notar os pequenos - e lindos - prazeres desses domingos de sempre...

O Maltrapa disse...

Se leste trinta e cinco, há uma de sobra, pois recém completei os trinta e quatro...

O melhor do Domingo é quando ele começa.

O Maltrapa

Marcya disse...

É verdade...
Ou você me roubou ou eu te roubei nesta...

diasdesetembro disse...

Ah, João, o amor, o amor!!!! Essa capacidade de transformar manhãs, pessoas e domingos!

Bela foto também!

Beijo, Tita

O Maltrapa disse...

Não me entrega, Tita, não me entrega... (hehehe...).

Beijo grande,

O Maltrapa

Roseane z disse...

Jurei para mim mesma fazer melhor uso da sua "outra face"( vosmicê foi cavalheiro, concedendo-me o benefício da dúvida), mesmo porque é a segunda e última ( face, não dúvida) ; se enfiar os pés pelas mãos, tô no sal!!!Arriscando-me novamente neste perigoso terreno emocional... seus escritos remetem ao um texto de Roland Barthes.Como vc., o autor tenta descrever toda beleza e prazer que se vive com "o outro", e como vc., explica sem explicar!Só dá ouvir as lembranças chacoalharem nas gavetas!Cruz credo!!!Aí vai:“Encontro pela vida milhões de corpos; desses milhões posso desejar centenas; mas dessas centenas, amo apenas um. O outro pelo qual estou apaixonado me designa e especialidade do meu desejo. Esta escolha, tão rigorosa que só retém o Único, estabelece, por assim dizer, a diferença entre a transferência analítica e a transferência amorosa; uma é universal, a outra é específica. Foram precisos muitos acasos, muitas coincidências surpreendentes (e talvez muitas procuras), para que eu encontre a Imagem que, entre mil, convém ao meu desejo. Eis o grande enigma do qual nunca terei a solução: por que desejo esse? Por que o desejo por tanto tempo, languidamente? É ele inteiro que desejo (uma silhueta, uma forma, uma aparência)? Ou apenas uma parte desse corpo? E, nesse caso, o que, nesse corpo amado, tem a tendência de fetiche em mim? Que porção, talvez incrivelmente pequena, que acidente? O corte de uma unha, um dente um pouquinho quebrado obliquamente, uma mecha, uma maneira de fumar afastando os dedos para falar? De todos esses relevos do corpo tenho vontade de dizer que são adoráveis. Adorável quer dizer: tanto que único: “É isso! Exatamente isso (que amo)!” No entanto, quanto mais experimento a especialidade do meu desejo, menos posso nomeá-la; à precisão do alvo corresponde um estremecimento do nome; o próprio do desejo não pode produzir um impróprio do enunciado: deste fracasso da linguagem, só resta um vestígio: a palavra “adorável” (a boa tradução de “adorável” seria ipse latino: é ele, ele mesmo em pessoa).Roland Barthes.Fragmentos de um discurso amoroso.Tradução: Hortênsia dos Santos.Francisco Alves Editora.Rio de Janeiro, 1989

O Maltrapa disse...

Ms. Z, acredito estar fazendo importante uso daquilo que me tens oferecido; verdadeiramente. Pelo que agradeço, intensamente.

À face não bastam os beijos...


O Maltrapa

Roseane z disse...

num intindi....quer dizer que continuo na "porrada" ?me deleta, vai!

O Maltrapa disse...

Quero dizer que nem só de manhãs de domingo é feita a vida. Sua perpicácia e visão filosófica tem, a mim, criado atritos, aparentemente, indesejáveis, mas sem os quais não caminhamos- pelo que, novamente, agradeço.

Um beijo grande,

O Maltrapa


Ps: e vê se pára de comprar briga comigo! Hahahaha!

Roseane z disse...

te disse.......com emoção é mais caro!!!!

beijão procê também.

Roseane z disse...

p.s- na linha "nem só de manhãs de domingo é feita a vida", acho que entendi que vc. me classifica como "sexta-feira-treze" !rsrsrsrsrsrsrsrrssrr. Mal posso esperar pelo próximo post!!!(brincadeirinha.....)

Ludandopála disse...

Hhehehehheheita!!!
Riririririi...

O Maltrapa disse...

Hahahahahaha!!! Adorei! "LUDANDOPÁLA"

Só você! Hahahahaha!!! Nova espécie de borboleta descoberta na caatinga pernambucana. Caracteriza-se por ser linda, leve e louca. Hahahaha!

O Maltrapa

LuCaaaaTINGA disse...

Não sabia que em mim eclodem tantos Ls LOOOOOUCOS assim.
Não dá, não dá para ser normaL mesmo, né!?
Vamos lá meu povo:
Mais um!
Mais um!
Mais um textinho, vai Anjoão do meu coraçãoZÃO !!!
LuCaaaaaTINGA ( gostei! Riiiriri... )