David Luiz - um craque com uma câmera na mão e boas ideias na cabeça! |
A dez dias da Copa do Mundo do Brasil,
manifestar entusiasmo pela Seleção Brasileira pode colocar o elemento sob maus
lençóis, estando, o incauto, sujeito a ataques ideológicos de todas as frentes.
É como se a torcida pelo time canarinho revelasse, em última instância, uma
indiferença aristocrática em relação aos problemas sociais da nação, e quando
não, pura alienação. Tenho a sensação de déjà vu,
mas admito que talvez haja razões para se torcer contra...
Na Copa de 70, no auge da
carnificina ditatorial tupiniquim, Médici colou a imagem do Governo à
da Seleção; abraçar a equipe nacional significaria dar lastro às torturas e ao
estado de exceção. Passei boa parte da minha vida num conflito interno,
indagando à minha consciência o que faria se fosse nascido à época de tal
patifaria. Engajar-me na luta armada, sim, mas deixar de torcer pela Seleção...
Haveria sentido em tamanha traição?
É possível (e até
compreensível) que muito guerrilheiro “subversivo” tenha comemorado o gol da
Tchecoslováquia que abriu o placar contra nosotros, na estréia. Era um gol nos
córnos do general, afinal!... Entretanto, após espetacular virada (4x1), as
emoções produzidas revelaram um sentimento de leveza e êxtase que nada tinha a
ver com o regime de terror imposto pelos torturadores - e quem antes torcia o
nariz, passou a torcer a favor. Os militares não tomariam o que é nosso.
Enquanto o Estado era
beligerante e genocida, gerador de tensão mórbida constante entre os cidadãos, Pelé
e companhia eram êxtase e fantasia, motivo de orgulho puro e alegria! A conexão
havia se dado pelo sentimento daqueles que se viam representados num terreno fértil
de arte e inventividade, simbolizado pela técnica exuberante e envolvente do
time brasileiro. A cada vitória, a lembrança de que ainda havia vida e
esperança, apesar das mortes nos porões.
Nas três copas subseqüentes,
esse incômodo enlace entre a então CBD (Confederação Brasileira de Desportos, que
logo se tornaria CBF) e a ditadura militar sempre incomodou o torcedor; algo
tirava a plenitude do prazer e do apoio incondicional. Com o fim dos anos de
chumbo, a Copa de 86 traria consigo o restabelecimento de um sentimento genuíno
entre a Seleção e o povo brasileiro; um amor sem amarras, livre e desimpedido.
O país tirava do forno uma Constituição Cidadã e todo mundo naquele pensamento positivo
de que o amanhã seria melhor, todos batalhando ‘pro dia nascer feliz’! Mas aí, o
Tancredo morreu, o Sarney apareceu e o time do Telê sifudeu! Doravante, o affair entre o scratch brasileiro e o torcedor voltou a degringolar; desta feita,
não só por razões ideológicas, mas, sobretudo, econômicas.
Não bastasse a ziquizira que se
abateu sobre a Nova República, ainda tivemos de aturar o Collor batendo pênalti,
o Lazaroni comandando a seleça e o Ricardo Teixeira vendendo a alma do futebol
brasileiro ao Diabo. A principal medida adotada pelo tão arguto como moderno
cartola foi conceituar e valorizar a marca “Seleção Brasileira”. Como
resultado, a grana saiu pelo ladrão durante sua extensa e lucrativa gestão. O
amor, no entanto, foi miando no coração da população.
Não que nos faltassem motivos; ao
longo das duas últimas décadas, Romário, Robolão, Rivaldo, Ronaldinho e Kaká,
com inúmeras conquistas, mundiais e demais, mantiveram as ações da CBF em alta
e a Seleção Brasileira nos píncaros do estrelato. Mas enquanto a marca se
sobrelevava, a alma padecia. Na Era das comunicações instantâneas, o link entre
a realeza do futebol mundial e seus mais abnegados súditos se deteriorava a
cada amistoso disputado em campos londrinos, texanos ou médio-orientais. Vendida
a sheiks, nikes, claros, sadias, itaús e gilletes da vida, a equipe atual parece
uma vitrine de garotos-propaganda.
Para piorar, as televisões,
insuportavelmente onipresentes, transmitem todo o cotidiano da Granja Comary em
clima de oba-oba e celebritismo, transformando tudo numa Disneylândia
verde-amarela e o telespectador num retardado mental ufanista. Forjam a toda
hora o papel de porta-voz oficial da Seleção, paparicam o Felipão e impõem aos
despreparados atletas uma amizade forçada e constrangedora. Domingo à noite,
por exemplo, o FANTÁSTICO prometia “Neymar, na intimidade, como você nunca
viu!”. O rapaz não podia nem olhar paras as coxas da Bruna, e lá estava uma câmera
bigbrodiana a noticiar a malícia do craque evangélico.
Uma coisa é ver a rapaziada do
CQC fazendo perguntas indiscretas ou arrotando intimidade junto aos famosos;
outra é ver um jornalismo pretensamente sério tutelar jogador, como faz Luiz
Roberto, ao chamar seguidamente de “Waltinho” o atacante Walter, do Fluminense,
evocando, coloquialmente, uma pretensa empatia entre ele e o matuto centro-avante
- ou àquilo que ele representa (pureza, ingenuidade, etc). Galvão, então, é o
mestre dos cumprimentos juvenis e descolados, bem como daquela mãozinha
paternal sobre o ombro de seus entrevistados. Ele espera que todos o tratem
como uma sumidade e, dado seu ego monumental, é incapaz de reconhecer no seu
interlocutor alguém de maior envergadura que ele mesmo.
O Esporte Espetacular exibiu uma
entrevista de Thiago Asmar com os brasileiros que atuam no Chelsea, cheia de
provocações infantis, sobre “quem é o mais falador” ou “quem tem o cabelo mais
bonito”, em que se via o repórter instigando os jogadores a se comportarem como
se estivessem falando à “Caras”. Houve até espaço para arrogância quando ele
indagou: -“Willian, então você é o caladinho da turma?”. Deveria haver mais
sensibilidade num jornalista que se vira para um ser humano tímido e manda um
“caladinho”, em frente aos companheiros de profissão e às câmeras de TV, num
misto de compreensão e chacota. Ele se coloca nitidamente num patamar superior
ao dos jogadores que, porventura, representam a nação.
Tantos motivos, artificialismos
e distorções nos levam, emocionalmente, cada vez mais para longe da Seleção,
pois não nos identificamos, em geral, com a apropriação tão mercenária e
padronizada de algo que nos é tão caro e seminal, como a cultura do futebol
brasileiro. Tampouco queremos ver nossa paixão atrelada a imagem de uma emissora de TV "oficial". Eu não quero ser amigão do Galvão! Toleramos até mesmo que nossos clubes sejam usurpados por aves de
rapina do mercado mundial, com promessas de craques, título e coisa e tal, mas
quando o mesmo se dá com o selecionado nacional, aquilo que há de mais genuíno
no nosso sentimento acaba morrendo, mesmo que aos poucos. Dá vontade de
recolher as bandeiras...
Nisso, em nada contribui o
Governo Brasileiro, em meio a tantas promessas não cumpridas, apregoar,
fanaticamente, o tal #CopaDasCopas rede afora. Moro numa cidade-sede e estou
envergonhado com o Governo local (do mesmo partido da Presidenta) por conta do
despreparo e das “suspeitas” de superfaturamentos, desvios e corrupção, mas
vejo peças publicitárias informando-me que moro no Paraíso. Em documentário
exibido à semana passada pela TV Câmara (Mané de Brasília), Agnulo (apelido carinhoso do nosso
mandatário) se jacta de estar construindo o “estádio mais barato da Copa de
2014”... Na boa, não tem como não se revoltar com os 1.6 BI gastos até agora, a
despeito do entorno do Estádio Mané Garrincha continuar uma joça.
E então, que se dane a merda da
Seleção?... Ou não?
Em meio ao desânimo e à desesperança,
eis que o zagueiro David Luiz dá mostras de que nem só de bobos vive o esporte
quando é indagado como seria sua “copa das copas”. A resposta, cheia de
personalidade (dada a frivolidade com que a Globo costura sociologia e futebol)
ecoou pela televisão de cada residência como ar fresco entrando pela janela da
madrugada: - “Quero que o Brasil também seja campeão fora de campo: que nosso
país consiga enxergar que também é importante que nosso povo tenha mais ajuda em
inúmeros aspectos. De que adianta ser campeão dentro de campo se nossa gente
não está bem?”.
À época do Tri, Tostão, por
exemplo, não disse nada, apesar de se sentir envergonhado em ter de apertar a
mão de Médici, no Palácio do Planalto. No contexto atual, porém, está claro que
alguém que aproveita os holofotes para chamar atenção às necessidades do seu
país não pode ser tratado como um alienado ou mau exemplo de cidadão. É um ídolo
que fala às novas gerações sobre a necessidade de mudança da realidade social
brasileira – é o “Craque-Cinema Novo”!
Não se pode, portanto,
confundir a CBF e suas patrocinadoras, tampouco a mancomunação do Governo
Brasileiro e da FIFA, com cada um dos indivíduos convocados para representar a
população brasileira numa Copa do Mundo – a maior demonstração de congregação
mundial entre os povos.
Por isso eu digo foda-se à CBF,
à FIFA, aos patrocinadores, à situação e à oposição política nacional, e a todo
aquele que se aproveitou para roubar a nação, e também à Joana e ao Teixeirão,
mas à Copa e à Seleção, não! Não é por culpa dos jogadores e muito menos do
cidadão (ainda mal instruído, mal-educado e maltratado) que o Brasil ainda seja
tão desigual, atrasado e corrupto. Que sejamos hexacampeões, e que, a exemplo de
David, a vitória da Seleção, em nossos domínios, expresse o desejo popular e simbolize
um país menos vira-lata; um país que joga não somente para inglês aplaudir,
senão para o povo brasileiro evoluir.
foto&arte: joão sassi
4 comentários:
Bem escrito pra caramba! (palavrões não são necessários!) Concordo com tudo! Parabéns!
Não se preocupe, da próxima vez substituirei por "esse bando de %*&$#, grandessíssimos, filhos da $#%*, pois sim? :)
Beijão e volte sempre; o Maltrapa agradece a preferência!
Jonjon, sabe que sou sua fã, e devemos considerar que este texto está realmente ótimo!
Que venha o hexa e um povo mais evoluido, mais forte e capacitado.
beijokas
Obrigado, Inaê; bondade sua!... Aposto que você ficou do meu lado na questão dos palavrões, né? ;)
E que venha a zorra dessa Copa, e que ela faça bem!
Beijão do Maltrapa
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