Contra tudo e contra todos, mas a favor da Vida, segue o Povo. |
Já senti meu peito cheio de
paixão por um borracheiro - Estivinelson
- que me deu atenção tal, bela e sincera, que quis levá-lo comigo. Tão trabalhador
e, principalmente, inocente, que nem parecia brasileiro, mas suas feições
bonitamente mestiças o entregavam por inteiro. Ignorante embora astuto, além de
sensível, era um talento desperdiçado, à feição de tantos outros milhões:
brasileiros e ladrões. Os amigos do Rei roubam enquanto são dignos de foro
especial. Estivinelson não precisa; é honesto. O mundo precisa dessa gente,
dessa estirpe.
Já me apaixonei por uma negona
– a banguela Sônia – que, ao lado de Gerusa, a Cigana, pedia carona por uma
estrada perdida no interior do Goyaz. Ela era uma graça! Eu tô que perguntava daqui
do volante e ela tá que respondia do banco de trás. Kalunga descendente de
escravos, Sônia se acabava de rir com minha curiosidade: - “Sabe quantos
habitantes tem no município?”, e ela; - “Ah, tem muitos... Hahahaha.”. Aí eu
dizia - “Tenho uma parente que morou aqui.”, no que ela emendava, - “Conheço,
sim! Hahahahaha!” - Tem coisa melhor pro encantamento da paixão que conversa
sem sentido e risada desenfreada? Eu olhava pelo retrovisor e só via aquela
boca sem dente aberta, numa alegria danada!
Estivinelson, com as mãos sujas
de graxa, assoprava o dedão que havia sido atravessado pelos caninos de um pit-bull,
na antevéspera: - “O cachorro era dum amigo meu. Tem galho não...”. O dorso da
mão apresentava vermelhidão e inchaço, mas não ia ao hospital porque temia ser
dispensado do posto de combustíveis onde trabalhava, caso ganhasse uma dispensa
médica. Ocorreu dele tapar com esse dedo mordido a saída da mangueira de ar,
inflando o danado como num desenho animado. A ferida certamente se inflamaria e
sua mão poderia ficar comprometida; - “Em casa eu ponho álcool”, resignava-se...
Sônia teve 13 filhos, todos no
mato, sem auxílio qualquer do poder público: - “Criei tudo vivo, na enxada; não
perdi nenhum!”. Uns estudaram, outros se mudaram, mas há quem tenha ficado na
roça. Sônia se sente feliz, apesar da vida dura, medida a léguas, entre uma
caminhada e outra sob o sol forte do Cerrado: - “Hoje a vida tá mió!”. Sônia ri
de tudo.
Estivinelson também, quando
mostra seus dentes um pouco separados e um brilho raro no olhar. Sai de
manhãzinha, de Planaltina de Goiás, para passar o dia todo trabalhando no Plano
e recebendo tratamento subumano. Carro após carro, freguês após freguês, tudo o
que recebe são ordens cheias de empáfia e pouca autoridade, além de alguma
gorjeta. O carro do ano ou o reconhecimento daquela gente não está ao seu
alcance, a não ser que banque o subserviente, coisa que não é. Então, para ser
gente, estuda à noite, quando volta pro entorno da vida importante. Encarou um
policial militar que bancava o valentão na sua rua, sem falar alto, olhando no
olho; - “Se vivo fora de casa é porque trabalho e estudo, e não gasto meu tempo
falando palavrão na frente da casa dos outros, inda mais fardado!...”.
Estivinelson é Povo.
Ao lado de Sônia, Gerusa tentava
e não conseguia - queria porque queria entrar na conversa, mas seus dentes
banhados a ouro e prata chamavam mais atenção que sua prosa. Além do quê, eu já
estava enfeitiçado pelo jeitinho da Sônia.
Na cidade seguinte, despeço-me
advertindo que mantenha sempre o olho aberto com esses turistas, pois são todos
descarados... Principalmente os de Brasília – só para ela responder com uma
última gargalhada!... Vou embora com um sorriso gostoso no rosto, claramente
cativado, do mesmo modo que me cativara o Estivinelson.
Ambos me cativam porque
carregam uma humildade sincera, além de uma tranqüilidade inspiradora em
relação à própria existência; a certeza de se fazer o possível e ir além, em
busca de simplesmente viver.
Eu fico pensando quanta gente
assim não vive por aí, sem se saber, até morrer...
Esse texto eu dedico a
Darcy Ribeiro, Mestre brasileiro que completaria 91 voltas ao redor do Sol
nesta data, e também a Lisa Sassi, que continua dando as suas, ainda que em menor número... Parabéns, minha irmã.
foto: joão sassi
2 comentários:
Lindo texto!
Me identifiquei com o sentimento do narrador, com a beleza de Sonia e de Estivenelson.
Obrigada pela dedicatória!!!
Que linda essa nossa nova identificação, mana!
Beijo grande!
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