Oh, quão dessemelhante!... |
Assim que as portas do
turboélice se abriram, Caetano Veloso sentiu um barrufo forte de calor bater
contra seu rosto; “Brasil, enfim”! Corriam quase dois anos desde o exílio. Gil
ficara em Londres, enquanto ele recebera autorização especial do governo para
visita de um mês ao país. Em 1971, a vertente mais violenta e inescrupulosa da
Ditadura Brasileira pulsava forte, asfixiando e calando quaisquer que a ousasse contestar.
Mesmo deprimido e temeroso,
Caetano fez a viagem; precisava de afeto, carinho e dendê. Tão logo seus pés
tocaram o solo pátrio, ali mesmo, no sopé da escada do avião, policiais à
paisana o meteram num camburão. “Puta-que-pariu:
saí da Inglaterra para vir ser preso no Brasil!” -, pensou, enquanto se
espremia entre alguns soldados, no banco de trás. A linguagem corporal dos
milicos destroçava sua estrutura argumentativa, posto que não houvesse
palavras, senão silêncio e intimidação física. Deixaram a pista do Aeroporto do Galeão e seguiram rumo ao centro.
Ao passarem pela Avenida Presidente Vargas,
o condutor se viu obrigado a diminuir a marcha por conta do tráfego pesado. Era
fim de tarde de uma sexta-feira, e o Rio de Janeiro se via iluminado por uma
torrente luminosa amarelada, com muita gente correndo pros botecos atrás de um chope
e alguma saliência.
Caetano mantinha a fronte
baixa, evitando o contato visual com seus sequestradores que tanto o violentava.
Um sinal fechado, porém, fez o baiano levantar levemente o olhar, alcançando um
grupo que vinha atravessando a avenida, em sua direção – reconheceu neles os
rapazes do MPB-4. Caminhavam tranquilamente, confabulando e gargalhando entre
si, metidos em roupas leves e violões, tendo seus cabelos e barbas soltos ao
vento, trespassados pelo brilho solar da vida. Havia pouco, um par de anos atrás,
estavam todos num ritmo frenético de evolução e criatividade artística,
participando de festivais musicais e dando cara definitiva à música popular
brasileira.
Mas isso foi ontem... Agora,
Caetano estava ali, num misto de pânico e alegria, observando, pelo vidro da
janela, seus amigos passarem a centímetros dele, sem desconfiar que dentro
daquela veraneio jazia um baiano cuja alma suplicava por um simples olhar; um
gesto de afeto que lhe desse força para se sustentar... Mas os meninos, enfim,
passaram e não o viram. Foram-se.
Caetano chorou por dentro.
Sentia um amor imenso por eles em meio a uma tristeza profunda. Sem espaço para
indignação, o sinal abriu, o veículo arrancou e a lágrima que se precipitara represou.
Mais de 30 anos depois desse
ocorrido, eu cumpria meu tempo de serviço militar obrigatório e, como soldado
do exército, estava, a oito de dezembro de 1994, de serviço de guarda no
Palácio do Planalto.
Após a ceia, exaustos pela
jornada puxada, muitos soldados se atiravam à cama ou se jogavam pelo chão do
alojamento, buscando um mínimo de descanso, enquanto outros aguardavam pela
hora da troca da guarda jogando Damas ou papeando. O Palácio disponibilizava
uma pequena televisão para entretenimento daqueles valorosos homens – uma
exceção à regra –, e todos puderam acompanhar as notícias do Brasil e do mundo
quando um tenente ligou o aparelho para assistir o Jornal Nacional: - Já vou
avisando; se tiver bagunça, vou desligar e vai todo mundo fazer faxina! -
ameaçou. A tropa se sentou calada e pôs-se a usufruir do melodioso timbre da
voz de Cid Moreira, amortizada.
De repente, uma notícia
espantosa é dada: - “Morre Tom Jobim, inventor da Bossa Nova, após se submeter
a uma cirurgia, em Nova Iorque”... – disse o Cid. A tragédia anunciada,
contudo, não surtiu qualquer efeito no alojamento, enquanto meu corpo se
convulsionava e eu buscava amparo no olhar de alguém, sem encontrar eco.
Na tela é exibido um momento em
que Caetano interrompe um show em São Paulo e começa a chorar a perda
irreparável do ilustre maestro brasileiro. Todos assistiam àquilo tudo e não
esboçavam reação, mantendo-se indiferentes, havendo até mesmo quem fosse insolente:
“Esse Caetano Veloso puxa um fumo forte”, presepou alguém, ocultamente. Não
havia drama no ar. Era um espaço vazio sem conexão com a realidade do Brasil. Decerto
porque em sua profunda ignorância e alienação coletiva, desconheciam por completo
o Tom, a Bossa e a palhoça.
Quanto a mim, tinha a exata
dimensão do momento trágico que acabara de se abater sobre todos – incluso
sobre os que o ignoravam, mas que jamais seriam ignorados pelo alcance de sua
arte genialmente brasileira; eu sabia o que ele representava, o que me
doía profundamente. E do mesmo modo que, mais de 30 anos antes, Caetano asfixiara
suas emoções em meio à hostilidade dos militares e à própria dor, eu também chorei por
dentro, calado. Até que a lágrima me escapou.
3 comentários:
Material de primeira, escriba! Já falei, e repito, que suas histórias de caserna rendem muito. Mantenha-as sempre vivas por aqui!
Hahaha! Maneiro, Márcio! Admito que não me esqueço dessa sua preferência pelo verde-oliva; quando comecei a escrever, pensei em você no ato!
E se no meio tiver uma pitada baiana, tanto quanto melhor, d'accord?
Abraço saudoso deste Maltrapa
Bien sûr, Monsieur L'Écrivain!
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