Fazia muito frio. Marcus Paulo, 11 anos, acordava bem cedo para ir à escola. No entanto, mais do que o abandono da cama morna numa gelada manhã de Inverno, o que realmente lhe tirava o humor era Laurinha, sua única irmã, mais nova que ele alguns anos.
Laurinha não tinha nenhuma obrigação em casa, de onde só saía para ir ao Jardim de Infância, à tarde. Ele, ao contrário, teve de assumir inesperadamente o papel de “homenzinho do lar” logo após a morte precoce do pai. Atordoado, via a infância cada vez mais distante.
Ela, por outro lado, divertia-se com as caretas de chateação do irmão que, querendo fugir às suas provocações, apressava-se o máximo que podia, mas nunca o suficiente. Ainda deitada, Laurinha se aninhava junto aos travesseiros e dizia “Isso aqui tá tão quentinho, Paulinho... Vai pra aula, não, bobão!”
Ele não respondia, mas a fuzilava com o olhar ainda sonolento. Sentia saudades de quando era pequenino como ela. De quando a escola era pura brincadeira e ele não tinha qualquer ingerência sobre o próprio destino; sentia saudades de não ter responsabilidades. E pensava, invejoso: “Um dia ela cresce, e aí, vai ver!...”
A rotina dele fora radicalmente alterada. Agora, além de acordar muito cedo, Marcus Paulo tinha uma série de obrigações e tarefas; como lavar a louça, comprar pão e leite, e até mesmo pagar conta de água na lotérica.
Ainda que lhe sobrasse algum tempo para a vagabundagem de outrora, lhe chateava ter que intercalar seus momentos de menino com os de homenzinho. Nada era como antes, e por mais que desejasse, jamais voltaria a ser. Quando menos esperava, lá estava Dona Célia, sua mãe, a dar-lhe uma tarefa inesperada. "Faça por você, por nós e por seu pai, Paulinho", dizia ela, constrangendo o menino.
Naquela manhã, como em todas as outras, saiu apressado e não pode tomar o café que D. Célia deixara sobre a mesa, antes de sair, ainda de madrugada, para o trabalho.
Laurinha não tinha nenhuma obrigação em casa, de onde só saía para ir ao Jardim de Infância, à tarde. Ele, ao contrário, teve de assumir inesperadamente o papel de “homenzinho do lar” logo após a morte precoce do pai. Atordoado, via a infância cada vez mais distante.
Ela, por outro lado, divertia-se com as caretas de chateação do irmão que, querendo fugir às suas provocações, apressava-se o máximo que podia, mas nunca o suficiente. Ainda deitada, Laurinha se aninhava junto aos travesseiros e dizia “Isso aqui tá tão quentinho, Paulinho... Vai pra aula, não, bobão!”
Ele não respondia, mas a fuzilava com o olhar ainda sonolento. Sentia saudades de quando era pequenino como ela. De quando a escola era pura brincadeira e ele não tinha qualquer ingerência sobre o próprio destino; sentia saudades de não ter responsabilidades. E pensava, invejoso: “Um dia ela cresce, e aí, vai ver!...”
A rotina dele fora radicalmente alterada. Agora, além de acordar muito cedo, Marcus Paulo tinha uma série de obrigações e tarefas; como lavar a louça, comprar pão e leite, e até mesmo pagar conta de água na lotérica.
Ainda que lhe sobrasse algum tempo para a vagabundagem de outrora, lhe chateava ter que intercalar seus momentos de menino com os de homenzinho. Nada era como antes, e por mais que desejasse, jamais voltaria a ser. Quando menos esperava, lá estava Dona Célia, sua mãe, a dar-lhe uma tarefa inesperada. "Faça por você, por nós e por seu pai, Paulinho", dizia ela, constrangendo o menino.
Naquela manhã, como em todas as outras, saiu apressado e não pode tomar o café que D. Célia deixara sobre a mesa, antes de sair, ainda de madrugada, para o trabalho.
O estômago vazio lhe aumentava não somente o mau-humor, mas também a sensação de frio. Assim que abriu a porta de casa, sentiu a ponta do nariz quase congelar. O vento uivava frio em suas orelhas de abano, o que lhe causou uma insatisfação ainda maior. Quando abriu a boca para dizer um palavrão, produziu fumacinhas que o lembraram da cama, esquecida, ainda quentinha...
Invejou uma vez mais a infância da irmã, trincou os dentes e pôs-se a caminhar. A escola ficava a trinta minutos de sua casa.
Apesar do martírio matinal, Marcus Paulo sempre gostou da paisagem produzida pelo frio. Gostava de ver o céu cinza-escuro, ainda que fosse dia. Gostava das árvores despeladas e enegrecidas, com seus galhos fantasmagóricos, perfiladas pela alameda, como soldados em reverência ao “Grande Líder Paulinho”. E gostava, sobretudo, do clima de placidez que tomava conta da vizinhança; as coisas, assim, “paradas”, eram-lhe mais fáceis de ser reparadas. Não fossem as orelhas de abano, seria o Inverno sua estação preferida!
Enquanto caminhava, deixou para trás o mau-humor, os travesseiros e o cobertos; seus sonhos agora eram outros.
Chegando ao colégio, porém, seguiu rabugento, sem trocar palavras com ninguém. Assim assistiu às aulas do primeiro período; calado e faminto.
Quando olhou para o grande relógio, sobre o quadro-negro, excitou-se; faltavam poucos minutos para a hora do recreio. Não tirou mais os olhos dele. O recreio era criminoso – somente 15 minutos! – e uma eventual perda de tempo poderia lhe custar caro.
A cada volta do ponteiro maior, um sorriso se insinuava em seu rosto. Quando soou a sineta, estava porta afora, zunindo pelos corredores.
Em trinta segundos, era mais um entre dezenas de moleques que se acotovelavam e se esgoelavam em frente à lanchonete, implorando para que uma das duas senhoras que ali atendiam lhe desse alguma atenção. Àquele instante, Marcus Paulo desejou ser maior e mais crescido do que era.
Não havia fila ou ordem; ganhava quem tinha o sovaco mais alto. A única esperança de ser notado requeria um tanto de força e outro tanto de sorte. Em meio aos cotovelos e sovacos mal-cheirosos, viu menino rindo e até chorando. Por fim, alcançou o balcão, sobre o qual se debruçou para então levantar a ficha e gritar, repetidamente: “Um cachorro-quente! Um cachorro–quente! Um cachor...”-, e ser atendido. Então, tudo mais silenciou...
Viu a ficha sendo tomada de sua mão por uma das senhoras, e ela conferindo o carimbo “cachorro-quente”. Viu quando a senhora pegou, de dentro dum cesto, o seu pão já envolto num saquinho plástico. Viu quando ela pegou a faca de serra e fez um corte em sua superfície macia. E quando abriu a tampa da panela de alumínio, deixando escapar uma inebriante quantidade de vapor quente. E também quando deitou a salsicha sobre o pão, finalizando tudo com uma caprichada concha de molho de tomate e cebola. “Tô!” -, disse ela, entregando-o a Paulinho.
Com seu bem mais precioso em mãos, a meta agora era conseguir sair – algo quase tão difícil quanto entrar. De cabeça baixa e o lanche junto ao peito, Marcus Paulo ergueu os cotovelos e saiu chifrando quem encontrasse à sua frente; só assim para lidar com o mundo-cão.
Da lanchonete, escapuliu pela lateral do pátio e desceu um lance de escadas, de onde avistou os pinheiros perfilados que lhe dariam a devida proteção. Caminhando pelo descampado, sentiu novamente o vento abanar suas orelhas, mas logo alcançou a árvore pretendida. Nela, as raízes cresceram a ponto de formarem uma reentrância que a ele servia como barreiras e, ao mesmo tempo, recosto. Ali, Paulinho costumava se aninhar às escondidas, envolto em sonhos e devaneios próprios de quem precisa de um tempo só seu para pensar nas coisas da vida.
Confortavelmente instalado em seu trono, olhou para os lados e não viu ninguém. Resolveu, então, abrir o saquinho plástico de seu lanche. Dali, viu a fumacinha que saía, fazendo com que sentisse a melhor das sensações, além de deixá-lo com a boca cheia d’água...
A primeira mordida era ritualizada, e também a segunda e todas as demais, até a última. Marcus Paulo não sabia, mas a cada mastigada, a cada engolida, sentia o tamanho do prazer que só a maturidade dos seus 11 anos podia lhe conferir. O resto do dia, passou-o felicíssimo.
Invejou uma vez mais a infância da irmã, trincou os dentes e pôs-se a caminhar. A escola ficava a trinta minutos de sua casa.
Apesar do martírio matinal, Marcus Paulo sempre gostou da paisagem produzida pelo frio. Gostava de ver o céu cinza-escuro, ainda que fosse dia. Gostava das árvores despeladas e enegrecidas, com seus galhos fantasmagóricos, perfiladas pela alameda, como soldados em reverência ao “Grande Líder Paulinho”. E gostava, sobretudo, do clima de placidez que tomava conta da vizinhança; as coisas, assim, “paradas”, eram-lhe mais fáceis de ser reparadas. Não fossem as orelhas de abano, seria o Inverno sua estação preferida!
Enquanto caminhava, deixou para trás o mau-humor, os travesseiros e o cobertos; seus sonhos agora eram outros.
Chegando ao colégio, porém, seguiu rabugento, sem trocar palavras com ninguém. Assim assistiu às aulas do primeiro período; calado e faminto.
Quando olhou para o grande relógio, sobre o quadro-negro, excitou-se; faltavam poucos minutos para a hora do recreio. Não tirou mais os olhos dele. O recreio era criminoso – somente 15 minutos! – e uma eventual perda de tempo poderia lhe custar caro.
A cada volta do ponteiro maior, um sorriso se insinuava em seu rosto. Quando soou a sineta, estava porta afora, zunindo pelos corredores.
Em trinta segundos, era mais um entre dezenas de moleques que se acotovelavam e se esgoelavam em frente à lanchonete, implorando para que uma das duas senhoras que ali atendiam lhe desse alguma atenção. Àquele instante, Marcus Paulo desejou ser maior e mais crescido do que era.
Não havia fila ou ordem; ganhava quem tinha o sovaco mais alto. A única esperança de ser notado requeria um tanto de força e outro tanto de sorte. Em meio aos cotovelos e sovacos mal-cheirosos, viu menino rindo e até chorando. Por fim, alcançou o balcão, sobre o qual se debruçou para então levantar a ficha e gritar, repetidamente: “Um cachorro-quente! Um cachorro–quente! Um cachor...”-, e ser atendido. Então, tudo mais silenciou...
Viu a ficha sendo tomada de sua mão por uma das senhoras, e ela conferindo o carimbo “cachorro-quente”. Viu quando a senhora pegou, de dentro dum cesto, o seu pão já envolto num saquinho plástico. Viu quando ela pegou a faca de serra e fez um corte em sua superfície macia. E quando abriu a tampa da panela de alumínio, deixando escapar uma inebriante quantidade de vapor quente. E também quando deitou a salsicha sobre o pão, finalizando tudo com uma caprichada concha de molho de tomate e cebola. “Tô!” -, disse ela, entregando-o a Paulinho.
Com seu bem mais precioso em mãos, a meta agora era conseguir sair – algo quase tão difícil quanto entrar. De cabeça baixa e o lanche junto ao peito, Marcus Paulo ergueu os cotovelos e saiu chifrando quem encontrasse à sua frente; só assim para lidar com o mundo-cão.
Da lanchonete, escapuliu pela lateral do pátio e desceu um lance de escadas, de onde avistou os pinheiros perfilados que lhe dariam a devida proteção. Caminhando pelo descampado, sentiu novamente o vento abanar suas orelhas, mas logo alcançou a árvore pretendida. Nela, as raízes cresceram a ponto de formarem uma reentrância que a ele servia como barreiras e, ao mesmo tempo, recosto. Ali, Paulinho costumava se aninhar às escondidas, envolto em sonhos e devaneios próprios de quem precisa de um tempo só seu para pensar nas coisas da vida.
Confortavelmente instalado em seu trono, olhou para os lados e não viu ninguém. Resolveu, então, abrir o saquinho plástico de seu lanche. Dali, viu a fumacinha que saía, fazendo com que sentisse a melhor das sensações, além de deixá-lo com a boca cheia d’água...
A primeira mordida era ritualizada, e também a segunda e todas as demais, até a última. Marcus Paulo não sabia, mas a cada mastigada, a cada engolida, sentia o tamanho do prazer que só a maturidade dos seus 11 anos podia lhe conferir. O resto do dia, passou-o felicíssimo.
16 comentários:
Olá Maltrapa!
Que conto lindo!
A sensibilidade do homenzinho que tem encantos de criança.
Eu é que devaneio na sua linguagem imagética,praticamente senti cada cena.
De maneira especial venho agradecer ao comentário que 'umedece' deixado no Poete.
rsrs
Bjs!
Carol,
Bom saber que palavras nos levam tão longe... principalmente, quando bem encaixadas.
Grato pelo estímulo.
Beijo,
O Maltrapa
Estimado Maltrapa,
O seu jeito de escrever é realmente brilhante, até os temas mais triviais e aparentemente insignificantes se tornam interessantes, ganham vida. É o domínio da língua, a imaginação literária, a materialização das imagens em letras e palavras, mas também uma fertilidade e riqueza interiores muito grandes. Acho que você vai ganhar a vida mesmo é com a literatura. Tenho a impressão que se começar a abordar temas mais universais, saindo um pouco do umbigo e do intimismo de um blog - que é um espaço individual - vai decolar, vai chegar a muita gente. Tenho certeza.
Caro Aníbal, que dupla surpresa! Nem o esperava por aqui e menos ainda que minhas palavras lhe cativassem tanto... Estou muito feliz por usufruir desse prestígio junto a você!
O melhor ainda está por vir.
De coração,
O Maltrapa
Parece o trecho escolhido de uma história maior, que deixa a gente com gostinho bom de ler mais um monte e comer cachorro-quente de quando era criança.
(Ah, e merece menção o pulo congelado da Laurinha na cama)
Beijos...
Velhinho,
sou seu fã.
Se contar pra alguém, eu nego...
Marcya, é certo que a história maior existe: está na minha cabeça e nos desdobramentos que a poesia da existência determinam. Por ora vou de conto em conto, ponto a ponto...
Muitos beijos,
O Maltrapa
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Zé isso é uma cantada? :P
Bom te ver por estas bandas antropólicas!
Abraço forte,
O Maltrapa
Que bonito! Lembrou minha infância em Sampa. O frio na hora da escola, a neblina, o céu cinza. A gente usava pijama embaixo da calça da escola e o lanche era ovo cozido ou sopa de feijão com macarrão. A vida era mais difícil do que hoje, mas ainda assim ser criança era o máximo.
Beijos e bom natal!
"Por Tutatis, protejam suas nariguetas", diria Obelix! Com um lanchinho desses, Amarilis, a flatulência entre a pirralhada devia correr (ou plainar) solta, né? Hahahaha!!!
Na Escola que eu estudava quando criança, a merenda era biscoito de água e sal com suquinho de limão ou café - vê-se que, à esta época, as merendas não eram superfaturadas!
Feliz Natal pra você também, Amarilis, mas volte logo, pois antes do Ano Bom, tem mais!
Beijão,
O Maltrapa
Ainda bem que eu virei Marcus Paulo só agora, com meus vinte e poucos anos...hehehehe...mas por sorte meu pai não morreu, apenas saiu de casa, e cá estou, pagando contas, resolvendo problemas, e invejando a vida boa do meu irmão, que só tem tempo para farras e estudo.
Belo texto João!
Nada como um cachorro quente para esquecer a infância perdida.
Tocante a história do menino Marcus Paulo.
Boas festas !
Beijão
Ana, não inveje o seu irmão. Enquanto ele ainda saboreia um delicioso cachorro-quente na hora do recreio, para você, o mundo já é bem mais amplo; e também suas conquistas. Aproveite!
Beijão,
O Maltrapa
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Celamar, é pertinente pensar que tanto melhor saboreada será a degustação do cachorro-quente, quanto mais Marcus Paulo se distanciar de sua infância. Para ele, aquele momento se revelou um ritual de passagem, tornando-se um verdadeiro símbolo de uma nova Era.
Um beijo,
O Maltrapa
ainda nem li o texto, mas estou encantanda com a fotografia!
Eu imagino o teu amor pela física ginasial (ainda existe ginásio?), para escolher o caminho mais surpreendentemente helicoidal possível para chegar de um ponto a outro:D. Ô nigrinha... devia ter ficado para ajudar e continuar o papo. Cê também, acha que ainda tem 18... De qualquer sorte, que as dores que se foram dêem lugar a outras, em outros sítios, para continuar a lembrar que estás vivo, e acompanhar uma trajetória de vida, de um ponto a outro, e não em círculos(vale para mim também)!
Marinota, você é, de longe, quem mais tem se ligado nas fotografias do Maltrapa. Essa daí, com a Marcya, ficou muito boa e faz parte de uma sessão com várias outras, nesse mesmo estilo.
Talvez seja o caso de se fazer um flicker (blog de fotos); quem sabe? A se pensar.
Aquela que postei no dia 2 de Novembro é a minha preferida deste blog.
Beijão,
O Maltrapa
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Zé, cê tá comendo ácido no café da manhã?
Abraço forte,
O Maltrapa
Cheirando ácido, fumando cola e injetando folhinhas...
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