Manuel Francisco dos Santos - o Garrincha |
Lá fora estava ainda escuro, mas a luz não tardaria a
aparecer. Deitado em meu colchonete, escutei a empregada trabalhando na
cozinha.
Eram barulhinhos de talheres, xícaras de porcelana e de
gordura chiando na frigideira. O dia estava quase nascido e um cheiro de manhã
logo se instalaria pela casa. Cuscuz e inhame na manteiga, mingau de tapioca, café
com leite e pão na chapa com ovos mexidos.
Eu adorava acordar cedo, principalmente porque estava de
férias da escola, veraneando em Salvador com minha família. Tinha passado de
ano com certa facilidade. Fazer contas de multiplicação era mais fácil que de
divisão, mas o que eu adorava mesmo era fazer “composição”. Agora, porém, na 3ª
Série, imaginava que as coisas ficassem mais complicadas.
Em silêncio, alcancei a porta do quarto e, já na sala, olhei
para um relojão-cuco barulhento no exato momento em que o passarinho saiu para
dar a notícia; seis da manhã. Pelos cantos, em leitos improvisados, espalhados por
ali e pelo resto da casa, havia uma pessoa deitada. A morada estava cheia de
gente, mas ninguém despertou. Foram seis cucos no vazio.
Entrei na cozinha e vi Hilda, a responsável pelo trabalho
pesado da casa. Nascida no interior, ela costumava acordar antes das galinhas.
Por mais dura que fosse a labuta, tinha sempre uma expressão de genuína
cumplicidade para ofertar. Poucas palavras; sorriso simples. Criada ao pé do
fogão, comida era o que ela sabia fazer de melhor na vida: cozinhava como já
não se cozinha mais. Seu contato com a realidade era furtivo e dava-se,
mormente, à hora em que se recolhia, ao pé do rádio, por onde recebia as
notícias da vida. Era uma Macabéia sem par, donzela no mundo até seu último
dia.
_ “Já acordado,
minino? Molhou o colchão?”, disse, mostrando os dentes separados, enquanto espremia
a laranja fresca, à mão. Não tinha espremedor melhor que aquela mão. Dela, além
de suco, saía carinho.
Abri a porta de casa a tempo de ver o sol surgir, dourando as
dunas da Lagoa do Abaeté. E logo estava atravessando a rua que ficava a poucos
passos da areia. Mingote de criança branca, me aproximei daquela água escura e
me sentei. A areia estava fresquinha e era fina como açúcar de confeiteiro.
Morria de vontade de pular n’água, mas meu pai dizia que dava doença. Então, eu
só molhava os pés.
Procurei com os olhos pelas lavadeiras, sempre conversadeiras
ao longo do dia e das margens da lagoa, mas não as encontrei. Nem elas, nem
aquele bando de crianças que sempre as acompanhavam. Também não vi nenhum negão
de cócoras admirando a imensidão. Meu pai dizia que eles faziam isso – ficar
ali, de prontidão – porque tinham sempre um bagulhinho à mão. Eu não sabia o
que era, mas devia ser bom, já que dia e noite, tinha sempre um deles
vislumbrando a superfície plácida como se estivesse em profunda reflexão.
Não se escutava nada, nenhum ruído, além do cantar de alguns
passarinhos escondidos pela vegetação. O sol já começava a subir, mas as águas
do Abaeté permaneciam intocadas, como se o dia não houvesse ainda começado. Nem
sinal de gente ou coisa alguma. Tudo estava parado, em suspenso, e o único
movimento perceptível era do meu indicador, desafiando a areia molhada que fica
no ínterim entre o branco das dunas e o coca-cola das águas.
Desenhei no chão um gol, e em seguida uma bola entrando no
ângulo. Não tive tempo de desenhar quem a chutou. Nesse instante, alguém tocou
meu ombro: -“Hilda disse que você saiu sem tomar café... Vamos lá?”- disse ele,
meu pai, erguendo-me pelos sovacos e me colocando sobre seu cangote.
Seguimos em silêncio pela areia, à beira da lagoa, até alcançarmos
o cume de uma ladeira que dava na rua de nossa casa. Passando por uma barraquinha
de palha que vendia coco aos turistas, ouvia-se pelo radinho de pilha um
locutor que alardeava, emocionado, a notícia do dia: - “Acaba de falecer, no
Rio de Janeiro, Manuel Francisco dos Santos - mais conhecido como Mané
Garrincha –, craque do Botafogo e da Seleção Brasileira! Chora o Brasil inteiro
a morte de seu maior ponteiro!”.
Senti que meu pai tomou um baque. Com os olhos marejados,
abriu a boca, mas não tinha o que me dizer. Eu sabia que alguma coisa grave
havia acontecido. Ele então me olhou e disse: -“Garrincha partiu...”.
Atravessamos a rua em silêncio. De fato, Salvador ainda não
acordara. Nem os coqueiros de Itapoã se mexiam. Entrei em casa e percebi que
todos ainda dormiam. Na cozinha, Hilda ainda espremia laranjas. E o cuco ainda
estava lá, inerte, parado no ar, sem vontade de voltar; marcava as mesmas seis horas
da manhã.
Só os passarinhos puderam ser escutados naquele dia. Era 20
de janeiro de 1983 e, desde então, nunca mais se ouviu tantas gargalhadas e
risadas pelos estádios. O Brasil perdeu seu ídolo mais brasileiro, e o futebol,
sua maior alegria.
Em homenagem à memória de Garrincha e de Hilda Carolina.
6 comentários:
Muito bom!Boa homenagem aos 30 anos de partida do craque.
Vai escrever bem assim lá na casa do C.... E olha que isso já vem lá da 3a/4a série!!! Tente resgatar coisas dos seus diários infanto-juvenis que terá muita coisa "feliz" (para agradar seu novo leitor - xará) para vc nos contar!!
Enfim, adoro este seu blog!! Só este (rs)
Bjs, Senhor G..zao!
Em outros tempos conheci 4 ou 5 dos refúgios de verão do clã limassantista em terras soteropolitanas. O primeiro e mais improvável - era pequeno em relação aos sucessores - ficava numa rua estreita, arborizada e escondida em Itapoã. Lá, num domingo ensolarado que atraiu muitos visitantes, assisti a raro espetáculo pela janela dos fundos: vizinhos da rua de trás construindo em mutirão uma casa de taipa. Estrutura de madeira entrelaçada pronta, familiares e amigos, homens, mulheres e crianças, molhavam, amassavam, assentavam e alisavam o barro nas paredes que tomavam forma. Num canto, a feijoada sendo preparada em fogo baixo numa trempe improvisada. Lá pelo fim da tarde, o grupo, já todo coberto de barro, se encaminhou para a praia para dar um mergulho e voltar para encarar o rango. Esse final eu não presenciei, mas o que vi já me deixou bastante satisfeito.
Com a violência crescendo em Salvador, particularmente em Itapoã, a opção por alugar casas em condomínios foi natural. Mais segurança, mas nada mais de mutirões, nem de passeios a pé pelo Abaeté.
Muito bom o texto. Você deveria enveredar mais pelas vertentes familiar e caserneira, que rendem bem.
Bravo! Bravissíma história, me fez voltar no tempo no interior de Sergipe, Cedro de São João, casa de minha Vó Laurentina, onde o inhame e a carne do soleram feitos com muito esmero e carinho por Dona Laura! Mané... pernas tortas como nunca mais veremos!
Valeu, Maurão! Esteja sempre presente, compartilhando suas impressões acerca dessa nossa aventura antropólica que é o viver!
___________________________________
Brasil, não sabia que você era dada a textos ludopédicos; cadê o maridão palpitando? Vou ver se resgato algo "dos meus diários" para entreter meus escassos leitores. ;) Beijão!
__________________________________
Márcio, sou até capaz de me lembrar desta casa que você descreveu... Provavelmente fora a que alugamos no ano anterior, em 82, e ficava "lá embaixo", bem próximo à orla. Lembro que a padoca ficava perto, e o cheiro de pão de leite era arretado...
_________________________________
Salve, grande Flávio! muito bem-vindo a este seletíssimo grupo maltrapilho, meu camarada!
Conto com suas assertivas para enriquecermos este caldo cultural que são nossas raízes brasileiras! Inhame com carne de sol é bom demais! Hahaha!
Um detalhe pequeno, mas importante para a coerência poética de seu comentário, Lima Santos: arretado é termo de uso em Pernambuco e cercanias. Na Bahia, e particularmente no Recôncavo e em Salvador, o ajdetivo se grafa e se pronuncia RETADO, sem o A.
Postar um comentário