Ao passar pela porta, já não se sente tão bem.
O acolhimento de antes se foi. A confiança também; e com ela, a cumplicidade.
São coisas que não se explicam, mas que se sentem. Qui parla? O coração, por certo, mas também outras instâncias. Sabe-se apenas que, de súbito, já não há mais, já não é mais.
Como o abalo sísmico que, se a tudo não devasta, altera. As rachaduras, o eixo empenado, a falta de base... Emocionais ou não, de difíceis reparos, quase irreparáveis; senão, de fato.
Há algum tempo sentia aquilo. Era entrar e lamentar. Sair e lamentar. Abrir ou fechar aquela porta significava uma pontadinha a mais no peito - ainda que fosse Sexta-feira; havia sempre o espaço para aquela dorzinha.
Passou a buscar nos antigos encantos um motivo para alegrar-se. Vã nostalgia. Cantos esquecidos, cheios de teias de aranha. Buscar o passado só aumentava seu desencanto.
O trato, antes intenso, agora era pouco, quase inusitado. Da parte de ambos. Dele, mais.
Ressentia-se e culpava-se pela falta de constância, pela atenção rala. E por não tratá-la com o devido respeito e carinho. Lá fora, as plantinhas sentiam na pele as emoções de uma relação conturbada: em momentos de paz, eram aguadas, e quando não eram, esquecidas. Se não fosse pela chuva que cai do céu...
Ela vinha se tornando cada vez mais estranha a seus olhos, o que não o impedia de buscar motivos para se sentir bem. Como uma noite bem dormida. Ou uma manhã bem acordada.
Quando o dia amanhecia, ainda deitado, tudo lhe parecia bonito, diferente. Pouco depois, o conhecido incômodo, a falta de intimidade. Já não havia tempo para o café da manhã; outrora venerado, agora, tomava-o no trabalho.
Do trabalho para a rua, e da rua, para outra cama que melhor o acolhesse... E ela, lá, cada vez mais esquecida, solitária. Ainda assim, pouco reclamava.
Sentia-se bem, dormindo fora, posto que era bem tratado, mas mantinha o pensamento longe, na insegurança da companheira abandonada. Pensava no que podia lhe acontecer e no que seria do futuro a partir da decisão que, cada vez mais, se mostrava necessária... e doída.
Quando voltava, baixava a cabeça, e aproveitava para se lamentar da poeira no chão. Do banheiro sujo. Da louça na pia. Da sua cara amarfanhada... Nada era como antes. E só no sono encontravam a velha harmonia.
Mas não naquela noite.
Ainda de madrugada, ele foi à cozinha, tendo se deparado com um grilo enorme, horrendo, da cabeça gorda, escalando as abauladas paredes da moringa de barro, seu bibelô. Foi uma sensação desagradável; mais uma, dentre tantas.
Como que em consequência daquele mau-estar, logo na manhã seguinte, acordara de mau jeito. Um movimento brusco e tinha seu humor comprometido.
Na cozinha, olhou novamente para moringa d’gua; seca havia dias. Lembrou-se do grilo e imaginou que o inseto pudesse estar ali dentro. Estava certo.
Viu enormes antes saindo pelo bocal. Tapou-o e correu ao jardim.
Colocou-a no chão e esperou... Batucou no fundo da moringa e esperou... Virou a moringa. Sacudiu a moringa. Bateu na moringa. Mas o bicho não saiu.
“Com água, talvez...”, pensou. E foi atrás de uma mangueira.
Num instante, o terror! Quando menos esperava, viu um grilo imenso surgir à sua frente, a poucos centímetros de seu nariz. A repulsa como reflexo, o susto, a falta de ar, a moringa arremessada!... O rosto lívido.
Ao procurar pelo bicho asqueroso, enxergou-o por entre as plantas, trôpego. Ainda que feio, era engraçado. Como um grilo de tênis.
Ao abaixar-se para melhor ver, recebeu um surpreendente golpe pelas costas. Era o abajur de bambu que o vento derrubara, num violento sopro.
Assustado, levantou-se, trêmulo. Olhou à volta. O abajur roto, a moringa despedaçada, as plantas maltratadas, o chão sujo, a rede pouco usada... E entendeu bem o que deveria ser feito.
A relação não é mais a mesma. Nem o respeito. E a casa, sua grande companheira, enfim, resolveu se pronunciar.
Photografie: joão sassi
15 comentários:
q triste o texto, mas mto, mto bem prosado!
Obrigada pela visita e pelos comentarios! Voltarei sempre e seja sempre bem vindo no meu cantinho tb!
beijos
Beleza pura sem mistura, Sarah!
Desculpe pelo texto triste... Mas era necessário. O importante é que o pior já passou.
Beijão,
O Maltrapa
Nossa, João, que linda sua despedida do ninho: "Nada era como antes"... o grilo, a moringa, as plantas maltratadas, o chão sujo, a louça na pia, enfim, a vida transformada, a despedida, "É hora de partir". Que seja feito de emoção e amor o seu novo ninho, como você merece. E o simba, irá com você?
Beijo, Tita
Puxa, Tita, agradeço as palavras de estímulo à construção de um novo ninho; dum novo mocó d'amour!...
Simba poderia até ir, não estivesse de ele em viagem de turismo sexual. Hà dias que não pinta no pedaço.
É hora de buscar palha; este novo ninho haverá de ser construído em terra de vida.
O Maltrapa
Se quiser ajuda na mudança ...
Se nós medíssemos o caráter de uma pessoa pela disposição em ajudar, Contreiras, cê já tava do ladinho de Jesus!
Ao momento certo, farei o apelo, valeu?
Abração,
O Maltrapa
Ps: e o Baêa, hein, que lááááástima...
E eu nem conheci seu ninho... que coisa! Na verdade foi uma grande pena o que aconteceu no dia anterior a nossa visita a nossa querida professora. Só depois eu entendi porque você nao ligou.
Mas já, já a gente se vê de novo!
Boa sorte
Beijos de amor
Se não o conheceu, Livota, não será por falta de oportunidade: antes da mudança, efetivamente dizendo, é óbvio que vou armar um goré-goré naquela baiúca; algo que fará as pessoas que porventura pousarem naquele benfazejo Ninho chamarem urubu de meu lôro... Mando o convite para Montreal!
Bisou, bisou...
Le Maltrapiê
Triste, poético... lindooooooo!
Como seus olhos ...seus textos falam à alma.
Quero meu lugar junto ao Senhor por isso se precisar de ajuda me chama tamém... como em "quase" todas as outras mudanças, estaremos lá, eu e cia ltda, ao seu dispor. bjuuuuuusss
Hahaha! Pode deixar, Inaê, que seu lugar na mudança está reservado: pilotando o fogão, preparando a matula dos pião!
Obrigado pelas poéticas palavras...
Beijo grandão,
O Maltrapão
MAIS MALTRAPA, VAI!!
Sempre que visito seu seu blog, sinto uma certa contração no estômago, sei lá...
--BEIJOS,
Lud Lu
Êita, ferro! Agora o Maltrapa também dá tesão! Hahahaha!!!
beijos,
O Maltrapa
Vai-se o ninho... sem forro, tadinho...
É, cara Virgínia, a sanha de algum flibusteiro urubuniano se adiantou àquele processo: o ninho, tadinho, sem o forrinho... Só me resta o carinho.
Bem vinda de volta!
O Maltrapa
linda a fotografia!
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