sexta-feira, 3 de outubro de 2014

A Culpa é do Sartre

Marina Silva conta com o segundo turno para competir em pé de igualdade com a candidata petista.

Dilma não se aguenta mais em pé. Está exausta e rouca; no limite das forças. Sorrir é um estorvo. Quando concordou em se reeleger, disseram-lhe que seria sopa no mel. Bastaria abraçar o Capeta e falar o que os marqueteiros mandassem e pronto; tudo se resolveria no primeiro turno. Ela, que acha um saco esse negócio de ser presidenta, topou meio a contragosto: “Na falta de opção, vai eu mesmo, uai!” – ponderou. Mas o que nem ela, nem o Lula, nem toda a companheirada poderia imaginar é que, na reta final, teriam de se jogar na campanha, de corpo e alma, como se não houvesse amanhã, sob o risco de o projeto petista ir pras cucuias.

Culpa do PSDB? Culpa da Globo? Culpa da FIFA? Não; culpa da Marina Silva.

É, a Marina, aquela que nunca escondeu sua gratidão a Lula por ele haver se metido nos cafundós do Acre, quando aquilo era terra de ninguém, no início dos anos 80, e acreditado no movimento dos seringueiros, então capitaneado por Chico Mendes. A mesma Marina que se tornou, aos 34 anos, a mais jovem senadora da República, tendo sido reeleita com mais de 70% dos votos, e que, por competência e caráter, passou a ser referência moral para seus pares petistas. Essa Marina, escolhida Ministra do Meio Ambiente pelo próprio Lula como uma espécie de “selo verde” do governo que nascia, e que, enquanto empunhava a bandeira e os ideais sócio-ambientais do partido, era apunhalada pelas costas em reuniões interministeriais, conchavos políticos da mais baixa estirpe e tenebrosas transações.

Foi Sartre quem disse que temos todos, o direito (e o dever) de contestar uma revolução caso ela degringole e se distancie de sua ideologia. E que se nossas críticas não ensejarem resultados palatáveis, há de se apartar e buscar a renovação das idéias.

A população brasileira, maior interessada no êxito do processo revolucionário inaugurado por Lula, 10 anos antes, criticou veementemente o ritmo do samba, em junho de 2013, ao passo que o poder estabelecido tratou de baixar o cacete nos foliões descontentes. Seriam todos coxinhas anti-petistas, os presentes? A partir dali, surgia nas redes sociais um tipo de perfil agressivo e fascista, até então desconhecido: se você criticar o Governo da Dilma, você é um bosta. Se você não confia no politburo, então você é reacionário e traidor.

Tratada como empecilho e sem voz dentro do próprio partido, nada mais natural para Marina do que seguir seu rumo, serenamente, amparada por suas convicções, e também por considerável parcela da população brasileira – sem populismo, sem estação de rádio, sem imprensa a seu favor. Ao contrário dos demais demissionários de Lula, saiu pela porta da frente, com audiência aqui e lá fora – todos interessados em saber mais a respeito daquela moça que preferia ter a cabeça cortada a perder o juízo. O nome disso é credibilidade.

A partir daí, revelou-se a face mais escrota da nossa Esquerda. Primeiro, em forma de escárnio, quando Marina recebeu acolhimento no PV; interpretada como uma agremiação nanica que não poderia fazer frente ao maioral do pedaço. Um minuto e vinte milhões de votos depois, as piadas se transformaram em críticas raivosas, com direito a distorções históricas que fariam Stálin se regozijar em sua datcha.

Em vez de considerarem a essência de seu discurso – sustentabilidade, ética e justiça social - seus antigos camaradas preferiram voltar suas cargas contra ela, transformando-a num Trotsky de saias. Logo, Marina estaria sendo acusada de ser uma marionete a serviço do PSDB, da Natura, do banco Itaú e das ONGs internacionais.

Os votos que Marina mereceu, contudo, em vez de virarem objeto de barganha (prática corriqueira, senão obrigatória na política tradicional tupiniquim), transformaram-se em força política e deram início à criação de um partido político novo em sua constituição, estrutura e propósito. Nascia assim a Rede Sustentabilidade que, podendo contribuir com (ou fazer ruir) o jogo político atual, foi providencialmente abalroada antes mesmo de seu voo inaugural, (segundo os nada enviesados critérios da Justiça Eleitoral). À socapa, surgiram aberrações como o partido do Kassab, o do Paulinho da Força e por aí vai, com tudo muito legítimo e bem divulgado, com todas as assinaturas nos conformes e todo apoio que o governo eventualmente precisasse. E a Rede, muito mais ramificada e conhecida, nacionalmente, não. Assaz curioso...

Imaginaram os algozes que Marina fosse carta fora do baralho, e esfregaram as mãos com o céu-de-brigadeiro que os conduziria à reeleição: “Relaxais, companheiros!”. E assim, até riram quando a “missionária sem partido” se prestou à condição de figurante, emprestando sua credibilidade a um Eduardo Campos que, em troca, prometia incorporar a seu projeto de governo a tal da sustentabilidade, tão clamada pela parcela mais ingênua da população – a sonhática. Não havia de ser nada, pois a dupla Dudu-Mamá não ultrapassava os 10% da preferência eleitoral; “que esperneiem, já que ninguém os ouve...”.

No entanto, o que era tido inicialmente como um desenlace natural (a candidatura presidencial), somente se concretizou graças a essas questões que não se explicam. Alçada tragicamente à condição de cabeça-de-chapa, Marina despertou a fera que devora o espírito democrático da militância petista, bem como dos ocupantes do Palácio do Planalto, sendo, a partir de então, atacada como Judas em Sábado de Aleluia. Entre outros motivos, por “ser” fundamentalista, neoliberal e homofóbica.

Hipocrisia e preconceito jorraram de todas as frentes de batalha, enquanto à militância revolucionária brasileira, pouco importava a verdade dos fatos, contanto que fossem interpretados como tal - Goebbels manda lembranças! Hoje, após dois meses de bombardeios massivos, o estrago está feito e não há mais como remediar... E não falo da figura de Marina, que continua altiva e inabalável, mas daquilo que eu sonhava ser a Esquerda do meu país.

Vi intelectuais e gente muito esclarecida falar coisas improváveis. Vi sangue nos olhos e ira nas palavras e nos argumentos de amigos meus; pessoas muito próximas a mim, que sabiam da verdade, mentiam descaradamente, internet afora, como se o comprometimento com a revolução supostamente em curso justificasse a falta de ética e de escrúpulos. Num piscar de olhos, os eleitores de Marina passaram a ser tratados como gente iludida, utópica e alienada, merecedora dos piores impropérios.
                           
Eis, portanto, que uma nova forma de se fazer política não é mais apenas uma necessidade expressa em forma de marketing partidário ou bandeira eleitoral, senão uma realidade próxima. De nada valem mais de 50 milhões de consumidores nas classes B ou C, se a lógica predatória do Mercado não salvaguardar nossos recursos naturais. De nada vale celebrar a inauguração de uma hidrelétrica enquanto nossos irmãos índios são desrespeitados e a diversidade biológica extinta. De nada vale uma transposição politiqueira se o rio a ser transposto estiver morto. Enfim, de nada vale ganhar uma eleição se o modus operandi de nossa elite revolucionária é tão nefando.

Fico, portanto, com o pensamento de Sartre e em companhia de tantos outros que acreditam na dinâmica transformadora da sociedade, metamorfoseando-se para o futuro e tendo tranquilidade para criticar aquilo que precisa ser arejado, remodelado, refeito. Doravante, as revoluções serão menos autoritárias e mais dialéticas, pois uma liderança política do terceiro milênio não pode prescindir do diálogo para estabelecer a harmonia social.

Que me desculpe a compreensível fadiga presidencial, mas o segundo turno está aí; e Marina, apesar de magrinha, é madeira que enverga, mas não quebra.



foto: joão sassi*

*antropólogo, fotógrafo e blogueiro, atualmente desempregado, escreve neste espaço quando dá na telha e vota Marina Silva Presidente