sábado, 27 de março de 2010

Irmãos


. . . . Jorge, Caci, Lisa, Pedro, João, Chico . . . .

A melhor coisa do mundo é ter irmãos (logo atrás de ovo, mulher, futebol e suco gelado de limão-galego - nessa ordem). Lá em casa, éramos em quatro. Nascemos um após o outro, numa escadinha sonhada por nove entre dez mamães. As demais sonham em ter filhos gêmeos.

Gosto muito dos meus irmãos. Nunca disse que os odiava, nem mesmo por amor. Mas bem que poderia, pois somente o amor produz sensações tão intensas e contraditórias entre si. Quem não ama, despreza ou esquece; quem ama, odeia e se chateia, mas não abandona.

São vários os laços que me unem aos meus irmãos; uns bons, outros não. De todo modo, existem. E por existirem, também me fortalecem existencialmente, dando-me identidade, cara e lugar. E sensação de pertencimento. Ter irmãos é ter a certeza de que não estamos sozinhos no mundo. Estar sozinho no mundo é o mesmo que não estar.

Pois eis que crescemos, deixamos de ser crianças, e a proximidade junto aos irmãos já não é tamanha. Cada qual com suas vidas, afazeres, interesses e loucuras.

Há um certo estranhamento quando nos damos conta de que as diferenças entre você e seus irmãos se transformaram em vidas distintas; opções contrastantes àquilo que você antes imaginava como sendo “senso comum”.

Da mesma forma, é instigante perceber que seus irmãos transformaram todas as suas respectivas ‘esquisitices de infância’ em estilos destoantes ao seu... Ou que ‘velhas manias de criança’ agora são discutidas em sessões de psicanálise. Antes falavam do jeito louco do João; agora falam do louco do João...

Mas é também engraçado quando a gente escuta o irmão mais novo falar “Eu nunca gostei de arroz à grega! Isso é coisa que você inventou! Aliás, odeio berinjela ao forno e picles em conserva!”, ou então o mais velho revelar que aquela inesquecível aventura de infância não passou de um recorrente exercício de imaginação. E que aquela empregada nunca deu pra ele na noite de Natal, em 84. Nem chupou seu pau. Ou de ouvir uma estória vivenciada por todos nós, mas com abordagens totalmente originais.

Noutras situações, de uma conversa sonsa, quase nada, renasce uma mágoa: “Minha boneca Susie que eu adorava, e que vocês cortaram o cabelo... Que ódio eu tenho até hoje!!!” – relembra a irmã mais velha.

Isso sem contar que ter irmãos é muito mais seguro que backup digital. Quanto mais irmãos, mais memórias vívidas e coloridas da sua própria vida lhe estarão eternamente à disposição.

Existe muita gente por aí que, por falta de afinidade ou vontade, não tem irmãos, mas simplesmente parentes. Não é culpa de ninguém, especificamente. Provavelmente é por conta da criação, e isso é coisa que não surja apenas de uma geração. Portanto, não há mesmo necessidade de culpar ao pai, à mãe... Ou mesmo ao irmão.

Passei toda a vida enaltecendo isso; essa coisa de ter irmão...

Então, já com a idade avançadíssima dos 20 e poucos anos, informaram-me que eu havia ganhado uma nova irmã. Não um bebezinho, mas uma já crescida, que era para não dar muito trabalho.

Ela nasceu sem que soubéssemos, fruto de um ‘instinto’ largamente difundido entre as classes jornalística, artística e operária brasiliense da década de 70. Foi um tempo em que ninguém era de ninguém e todo mundo era de todo mundo. Ou quase todo mundo. Foi nessa cadência que Amanda veio ao mundo.

O aviso que tínhamos uma nova irmã causou surpresa e expectativa. Afinal, ela já tinha 18 anos, dois filhos e muita história de vida.

A aproximação foi lenta, devagar... Coisa de uns 10 anos. Mas, há dois verões resolvi aceitar um convite dela para conhecer sua família, seu lugar.

Desde então, Amanda tornou-se minha irmã. Com ela descobri afinidades que nunca encontrei nos demais. Descobri também estilos, pensamentos e instintos semelhantes aos meus. E descobri também que o tempo não é nada; quando se ama, se quer.

Há dois dias ela fez aniversário. E eu, pelo segundo ano consecutivo, não liguei. É porque estava escrevendo esse texto, só para dizer a ela o quanto ganhei.

quarta-feira, 24 de março de 2010

Hip Hop Nacional - É Nóis na Fita, Mano Brown! (um texto para se ler cantando)

Dobrando a esquina de mármore, ouve-se o inconfundível ruído da periferia, expressado na batida sincopada do rap marginal. “Mente sã, corpo são; só quem tá pilhado se segura; curte a marcação! Parada bloqueada, se liga, playboyzada, que chegou a nossa raça e a barra tá pesada!...”

Então, surge um grupo de manos e minas.

Ainda é cedo, são as primeiras horas da manhã. Mesmo assim, elas dão pinta de que estão, há muito, preparadas. Caminhando à frente da rapaziada, têm os cabelos molhados, escorridos, colados na cara chapada. Lápis de olho, e maquiagem marcantes. Trazem também nas roupas, especialmente nas calças, marcas de falsos brilhantes.

As unhas coloridas e, claro, indefectíveis tênis de corrida berrantes. São elas que se põe a cantar, trazendo consigo o ritmo forte da batida que ecoa pelo alto-falante do aparelho celular.

Logo atrás, 4 ou 5 manos, com cara fechada, acompanham as minas, com menos badulaques, mas em clara expressão indolente; pura presepada.

Vão abrindo espaço, perpassando os transeuntes, ignorando os raros passantes, fazendo de todos, postes, espectadores de seus rústicos rompantes.

É a hora deles. O palco é deles. A faixa é deles. E os corredores quase vazios de piso brilhante apenas enaltecem a cara desse povo adolescente, fazendo desse instante uma alegria; a hora mais marcante do dia.

Logo, logo, porém, sumirão de cena e assumirão o ofício diário; trazendo papéis, comendo pastéis, preocupados com o horário. É a turma da Câmara: os estagiários.

Deslumbrado, cruzo por eles; passo rente e vou em frente, fazendo coro àquela gente: “Mente sã, corpo são; só quem tá pilhado se segura; curte a marcação! Parada bloqueada, se liga playboyzada, que chegou a nossa raça e a barra tá pesada!...”

terça-feira, 16 de março de 2010

Orfeu Parmênides e o Sonho De Heráclito


Após o banho, fomos nos deitar. Não era tão tarde.

O dia seguinte seria de muitos compromissos; atividades importantes que vinham sendo cumpridas à risca.

Então nos abraçamos e demos um beijo de boa noite...

Nossos lábios se tocaram de leve e nossas mãos se entrelaçaram, e depois veio a língua; logo, a sensação de calor. Pensei: "Ela tá querendo..."; ela pensou: "Ele tá querendo"... E assim, fizemos amor, desaguando num prazer infinito, imutável e único. Em seguida o sono profundo...

Uma semana depois, nosso sonho acabou; volúvel, cinzento. Foi quando me caiu ao colo uma sensação de que Parmênides poderia, então, não ter mesmo nenhuma razão...

terça-feira, 9 de março de 2010

Mãe, Esqueci a Infância na Casa da Joana!


Yago passava todo o tempo do mundo se aventurando pelo mundo exterior. Cumpria com disciplina suas obrigações em casa e as tarefas escolares, mas dedicava a vida às brincadeiras de rua; era lá que ela – a vida - fazia sentido.

Desde pequenino, acostumara-se a usufruir de tudo o que estivesse ao alcance; das brincadeiras de bola às de correr; das modas às conversas fantasiosas; de saladas-de-fruta às subidas na árvore. Muito costumeiramente voltava para casa já bem tarde. E no banho, enquanto passava a bucha sobre os pés imundos de terra, pensava, ansioso, em tudo o que faria novamente no dia seguinte.

Relembrava, sorrindo, cada jogo disputado, cada batalha travada, cada conversa ou gargalhada. Com seus 11, quase 12 anos, ele era a própria excitação concentrada. Em pouco tempo, seus impulsos alcançariam fronteiras ainda inexploradas e bem mais abrangentes da natureza humana, e o interesse cada vez mais aguçado pelas moças era o maior reflexo dessa mudança.

No entanto, e ao contrário do que pensava o guri, a aproximação junto às moças era cada vez mais difícil à medida que seu interesse aumentava. Elas já não se mostravam mais tão acessíveis como em tempos idos, quando brincavam juntos, descobrindo-se mutuamente por entre as roupas de um armário escuro, sob a cama ou metidos num canto qualquer que lhes oferecesse proteção e anonimato. Era um tempo em que as vontades eram saciadas sob o manto da inocência.

Mas quando os pêlos começam a nascer e a voz a esganiçar, o olhar lúdico da criança se perde quase que totalmente, dando lugar a uma crescente e despudorada malícia. Então, o menino passa a viver uma espécie de entressafra existencial, onde seus desejos de homem - cada vez mais aflorados - passam a não mais caber em seu corpo infantil, indo desembocar nas tortas linhas de um rosto desproporcional e cheio de espinhas. Eis aí a síntese da puberdade masculina.

Completando o quadro, as meninas da sua idade, por motivos óbvios, só se interessavam por garotos mais velhos; ‘adolescentes de verdade’, de 14 anos ou mais. E as meninas mais novas não eram meninas, senão crianças cujo único contato para com o mundo masculino se dava por meio de tapas, arranhões e muita histeria. Carinho, só para as bonecas e ursinhos de pelúcia.

Nenhum desses dois grupos, no entanto, era de seu interesse. O giovanotto gostava mesmo era das meninas mais velhas que ele; as que já tinham peitinho, bunda e cara de mulher. O foco se fazia, portanto, nas amigas das suas irmãs mais velhas, bem como nas irmãs mais velhas de suas amigas.

Sempre que ocorria uma situação onde ele pudesse se mostrar, ele se mostrava. Qualquer sinal de que era notado o fazia tocar as nuvens, sendo imediatamente guardado por ele num compartimento especial de suas memórias afetivas. A reciprocidade feminina passou a ter uma importância fundamental em sua vida.

Quando isso ocorria, passava a merecer lugar de destaque nas cotidianas e solitárias homenagens que ele prestava às mulheres, no banheiro de sua casa (ou em qualquer outro lugar). O corpo ainda em formação não produzia sêmen, mas o menino se desmanchava em prazer, várias vezes ao dia.

Esmerava-se em selecionar uma de cada vez, dedicando cada momento de intimidade a uma de suas homenageadas. No banheiro do colégio, pensava em Renata, a menina mais bonita da classe. Quando estava em casa, fazendo os deveres escolares, era Graziela, a irmã do amigo Marquinhos, quem ocupava lugar de destaque em sua imaginação. No curso de Inglês, Juliane era a bola da vez; e para cada atividade realizada, Yago elegia uma musa inspiradora. Todas elas, contudo, estavam com seus dias de diva contados...

Numa tarde, quando jogava queimada numa pracinha próximo à sua casa, Yago conheceu Joana, uma loirinha, de olhos azuis e rostinho de princesa que morava no edifício em frente ao seu. Ela tinha nove anos, adorava bater nos meninos e carregava a fama de ser chatíssima; ainda mais quando fazia uso de seus agudos sibemóis para comandar as brincadeiras.

O que fazia Yago suportá-la era sua irmã mais velha, Patrícia, quem sempre a chamava quando a noite caia. Patrícia tinha 16 anos e todos os atributos que um homem deseja, literalmente, possuir.

Bastava findar a luz, que lá vinha Patrícia a chamar a estridente Joana. Moravam com a avó que, sempre adoentada, fazia questão que as duas estivessem em casa até as 8 horas da noite. Para desalento de Yago, Patrícia nunca vinha só. Estava sempre acompanhada do namorado João Paulo. Não era difícil encontrar o casal se bolinando às escondidas, por detrás de alguma pilastra ou muro. À hora limite, João Paulo vinha se despedir de Patrícia à porta do elevador. Era uma figura irritante, com seu cabelo vermelho, um sorriso antipático e as indefectíveis sardas que se espalhavam à perfeição pela sua cara de pastel.

João Paulo e Yago se detestavam. Este odiava aquele porque invejava seus 18 anos, sua perna cabeluda e, obviamente, a namorada. Por outro lado, JP se incomodava cada vez mais por Patrícia dar exacerbada atenção ao pirralho, além de sempre lhe reservar algum elogio: - “Que lindo, este menino! Aposto que já tá namorando, né?” -, dizia ela, enquanto o namorado se impacientava cada vez mais ante a presença do ‘rival’.

Yago sonhava com o dia em que encontraria Patrícia a sós... Mas como, se ela estava sempre atrelada à avó, à irmã ou ao namorado? Um dia, porém...

Naquela tarde, ao chegar à pracinha, Yago não encontrou Joana. Não a tendo visto pelas cercanias, apelou para o interfone e descobriu que sua amiga estava em casa, jogando vídeo game. Foi convidado a subir.

Dentro do elevador, sentiu um cheiro gostoso de perfume de mulher e pensou que era de Patrícia, e pôs-se a imaginar se ela estaria em casa também...

Mas não estava.

Estava apenas Joana e a avó, Dona Fátima. Esta, afundada numa velhíssima poltrona de couro, assistia à TV (de olhos fechados), a um volume estratosférico, posto que fosse quase surda.

Joana abriu a porta e os dois foram para o quarto. Ficaram lá por cerca de duas horas, até que, num súbito repentino, Yago largou o controle do jogo e olhou para Joana.

- O que foi? -, perguntou a loirinha.
- ...
- Yago?...
- Tenho de ir embora... Agora!
- Quê?...

E já se levantando, saiu, deitando explicação pelo corredor: - “Já são 8 da noite! Sua avó vai se chatear. Tchau!” -, disse, se apressando em alcançar a porta.

De volta ao elevador, Yago não apertou qualquer botão. Apenas sentou-se e esperou.

Poucos minutos depois, um leve solavanco, e o elevador se pôs a descer. – “É ela... Só pode ser ela!...” -, exclamou, se levantado num pulo, com o coração quase a lhe escapulir boca afora.

No térreo, quando a porta se abriu, ele nem conseguiu fazer cara de surpresa ao se deparar com uma sorridente Patrícia:

-“Menino bonito!? O que você está fazendo aqui?”
-“Eu tava na sua casa, jogando videogame com sua irmã...”
-“Sei... Então vem comigo; quero que você me leve até o meu andar” -, disse ela, sorrindo maliciosamente para o garoto.

Quando a moça apertou o botão do 6º andar, Yago sentiu o corpo congelar. Ele desejou aquele momento mais do que qualquer outra coisa, mas agora, não tinha a menor idéia do que deveria fazer (se é que deveria fazer alguma coisa)!

Alheia à aflição do garoto, Patrícia se olhava no espelho e ajeitava, tranqüilamente, o cabelo algo despenteado, e também o vestido visivelmente amarrotado. Mesmo paralisado, Yago acompanhava, visualmente, cada movimento das mãos dela; o toque nos cabelos, a forma macia como tocava o próprio vestido... Viu quando, da roupa, a mãos passaram à pele, indo alisar um par de coxas bonitas, cheias de pelinhos dourados... – “Você gosta das minhas pernas, Yago?” -, perguntou. No que ele apenas assentiu, balançando a cabeça.

Quando o elevador chegou ao destino, Patrícia rapidamente se virou e pediu a ele que olhasse em seus olhos. Dentro deles, num brilho sedutor, Yago enxergou a imensidão de sua paixão ainda nascente, que logo se transformou em ardor quando Patrícia levou seus lábios de encontro aos dele, num indescritível beijo de mulher. – “Esse é o nosso segredo!...” -, disse ela, fechando a porta.

Yago não se movia, como se sua imobilidade lhe fosse garantir a perpetuação daquele instante. Tudo o que ele vivera de mais emocionante até então ficou, de repente, perdido num tempo distante.

Chegando ao térreo, suspirou profundamente antes de abrir a porta com firmeza e elegância. Ao sair, já não era mais o menino que há pouco apertara o interfone. Decidido, começou a caminhar, altivo e tranqüilo, mal percebendo que acabara de deixar para trás, sentada no chão do elevador, a própria infância.