quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Jussara Odeia Cama


Uma noite gostosa de sono tem grandes chances de desembocar numa manhã risonha, daquelas com sol ameno, com orvalho na grama, ao canto do galo despertador e com cheiro de café no coador.

Tenho cá para mim que esse negócio de dormir até tarde é patologia da modernidade. A cama é lugar para rituais sacros de amor e sono; preguiça é pecado. Então que inventaram a lâmpada só para estragar a noite; e com ela, o dia. Quem dorme mal, acorda mal.

Tenho uma conhecida que á assim; Jussara acorda mal todo dia. Não fosse esta uma realidade, como explicar sua cara engrupida a cada bom dia? Como entender sua expressão azeda, mesmo quando ela não está chupando limão? Só pode ser por falta de... Sono! Poder-se-ia cair no lugar comum e dizer que é por outra falta (aquela, que fica), mas seria simplificar demais.

Não adianta vir com delicadeza ou educação, pois a bicha tá sempre em pé de guerra. “Baixe as armas”, costuma provocar, outro colega nosso, na vã tentativa de suavizar seu ímpeto 'vilânico'. “É nossa Kátia Abreu!!!”, diz ele, deixando explícita a associação àquela senadora que tem, por “virtude”, a macheza xucra.

Outra característica sua é a ‘expansividade’. O termo é ambíguo, bem sei, e pode ter muitos significados; alguns bons, outros, nem tanto... Jussara tem necessidade de expandir tudo: sua voz, seus pontos de vista, seus doutos conhecimentos jurídicos e, principalmente, seu infinito particular.

Dependurada em redes sociais, tem a mania de comentar todo e qualquer assunto que, porventura, esteja discutindo com sabe-se lá quem. Tem enorme naturalidade em virar-se para o lado e mandar ver: - “Gente, eu não posso com a fulana!... Olha só o que ela está me dizendo aqui!...”. Nem se preocupa em notar que as pessoas à sua volta têm, por hábito, trabalhar durante o horário de trabalho. Ela não.

Fala, fala, fala, fala e fala. Fala mais que a mãe do Gualda. Bufa. Respira alto. Bate a gaveta com força desproporcional. Atende ao telefone ora com empáfia, ora com raiva, fazendo sempre questão de desligá-lo de maneira bruta, como se raiva tivesse. A vida, para ela, só parece existir na demonstração, na superficialidade, na aparência e, principalmente, na carência que ela exorta: “Olhem para mim, por favor!”...

Tem mania de dar bronca nos mais fracos. É natural escutá-la gritando com o filho e com a empregada, por telefone, e também com o rapaz que lava o carro, que vem até aqui entregar as chaves só para ser destratado em frente a todos. Ela se sente muito importante assim, demonstrando toda sua solteirice e seu pulso forte. Sente-se o protótipo da mulher do séc. XXI.

Talvez por isso, só ande de carro novo, pinte os cabelos de loiro-malibu, esmalte as unhas com cor berrante e só saia de casa com, no mínimo, 790 gramas em penduricalhos doirados. Jussara ama o dourado. É a prova de que ela venceu na vida. Quando visita a terra natal, banha-se em ouro para mostrar que venceu. Só não vê quem não quer.

Tornar-se seu amigo é muito fácil; basta acatar suas idéias, sugestões, ponderações e achismos filosóficos. Em prol da boa convivência, foi este o caminho que andei percorrendo durante muito tempo. Apenas que me era muito caro o enorme desperdício de tempo que daí resultava. Tive de aprender a conversar sem tirar os olhos da tela, porque se olhar para a cara dela... Vixe, é difícil de sair.

Ela te olha, te engole, te fala, te espreme contra o muro; faz de tudo para que você seja seu cúmplice – e todos sabem: a cumplicidade só se dá pelo olhar.

Para ela, o trabalho só existe quando ela está trabalhando. É daquelas que franzem a testa se alguém tosse quando ela está lendo alguma coisa ‘importante’. Coitada da moça da copa, que vem solicitamente perguntar se ela quer café. Jussara adora café, mas quando está trabalhando, incomoda-se assustadoramente com a pergunta. Nesses momentos, ela se dá ao trabalho de espalmar a mão, estendê-la no ar e dizer “Peraí...” - deixando a ‘criada’ ali, parada, esperando por uma simples confirmação. Quando vem o café, reclama que está frio ou velho: - “Quando eu trabalhava no Supremo, com o ministro tal, tomava café na sala dele!”... -, diz, esperando por um “ohhhh” de inveja que só existe na cabeça dela.

Para meu desespero, notei que ela se sentia muito mais à vontade comigo quando estávamos a sós. Era como se ela esperasse pela minha chegada para poder colocar em dia suas fofocas e indignações cotidianas: - “Olha isso aqui! O banco quer me cobrar juros de uma dívida de 5 anos atrás; que absurdo! Lembro bem que paguei tudinho! Olha aqui, tenho até o comprovante... Olha!”.

Por vezes, tentei demonstrar que seus problemas pessoais não me despertavam assim, ‘taaaanto interesse’, mas ela não entendia minha psicologia. Pensei em ser bem direto, mas assim, correria o risco de criar um clima hostil que não me agradaria. Quando eu já pensava seriamente na possibilidade de me mudar para outra dimensão, algo novo surgiu no horizonte...

Cheguei ao trabalho com a cara-de-feliz que me é peculiar. Não havia tido noite de sexo, nem acordara com os passarinhos gorjeando minhas palmeiras, mas tinha dormido bem a noite inteira.

Jussara estava lá, à minha espera. Entrei, simpático: “Hello, crazy people!”. Ela, como de costume, mal consentiu.

Liguei o computador e fiz gracinha para a senhora da copa, que me trazia a jarra d’água. (Ela me acha lindo, a copeira.)

De repente, desperta o monstro! – “Gente, olha só o que o Tostão está fazendo! Que canalhice!!!”, disse ela, iniciando uma difamadora conversa a respeito do ex-craque da Seleção Brasileira e do Cruzeiro.

O tom da voz estava alto demais para aquele horário. Além do quê, o que ela dizia não fazia jus à realidade dos fatos. E disso eu sabia, visto que acompanho tudo o que o mineirinho tem escrito, além de haver lido, recentemente, sua autobiografia. Em bom Juridiquês, desmontei toda a fofoca que ela destilava. A moça não gostou e perguntou se eu estava com algum problema, voltando-se para mim com desequilibrada agressividade. Respondi que ela estava falando sobre o que desconhecia, e isso não cabia bem a tão sapiente criatura. Então ela reclamou do meu tom de voz, no que eu perguntei se ela não dispunha de um espelho com reflexos audiofônicos em sua residência para escutar o ridículo de sua afirmação. Jussara então se calou. E assim passou o resto da manhã, e também do dia, e da semana. Está de mal.A guerra dela é minha Paz!


Espero não haver tempo para tréguas em nosso horizonte.

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Chupa, Arruda - Chupa na Papuda!

Ao ver a porta do carro se abrir, tive a certeza de que o pior estava por vir. O ‘idiota do pulo’ desapareceu na multidão, deixando a todos com ar de culpa e cumplicidade. Uma figura intimidadora saiu, olhando para nós de modo ameaçador, como se oferecêssemos um real perigo ao que quer que fosse. Por fim, voltou ao carro e o comboio seguiu.

Ficamos para trás – alguns, atônitos; outros, indignados. Em comum, a perplexidade ante a aberração a qual acabáramos de ser submetidos.

O que, de caráter tão emergencial, teria levado o Estado a investir contra a própria população? Aliás, não contra as pessoas, mas contra uma tradição secular que representa nossa mais conhecida manifestação cultural em escala planetária – um símbolo nacional! Pobres escrituras... A Terra Santa prevista por Dom Bosco, o sonho visionário de JK, a Capital de todos os brasileiros, encontro de todas as culturas!... Pobre Brasília.

Sei que nunca se deve fazer esta pergunta, mas o choque fora tamanho que não tive opção; então, mandei ver na dramaticidade do ato, e, como quem suplica ao Salvador em peçonha, indaguei: “Ó, Deus, o que mais, de tão indecente, poderia ocorrer a esta infeliz cidade?...”.

Já dizia um sádico militar da Cavalaria, o Cel Marcondes, que “nada poderia estar tão ruim a ponto de não poder piorar ainda mais” – afirmativa imperativa que fazia cessar, de imediato, qualquer lamento ou choraminga dos soldados que comandava. Ainda que estivéssemos sobre areia movediça, ninguém dava mais um pio após escutar aquela máxima.

E assim, surgiu a resposta. Do fim da rua, viu-se uma movimentação brusca, logo justificada pelo avanço descortês de duas fileiras de ‘seres-brucutu’; gente ignara que vende sua força de trabalho não somente por conta do salário, mas pela desobrigação de ter de pensar, e simplesmente obedecer, executar e atacar. Por mais tacanha que pareça ser, imagino que deva haver algum tipo de reconforto existencialista nessa escolha.

Cada um trazendo um cassetete estrategicamente elevado à altura de nosso abdômen, fazendo que cada folião “sentisse”, fisicamente, a presença da tropa protetora. Pendurados em seus cintos de mil utilidades, bombas de gás lacrimogêneo e sprays de pimenta, que logo foram acionados – provavelmente por “força das circunstâncias” e violentamente investidos contra a multidão.

Como a ponta de uma lança descomunal, rasgavam, feriam e machucavam os foliões; talvez menos na carne do que na alma.

Almas idosas e até infantis, de nostalgia, mas também de fantasia, brutalmente atacadas, asfixiadas pelo gás, cegadas pelos sprays de pimenta; espancadas pela natureza bruta, desumana, violenta.

O que pouco antes fora alegria, logo desabou em correria. Por entre os vãos dos prédios comerciais escapuliam, aos trancos, pessoas imersas em fumaça e grito. Pediam água, caiam e choravam.

E logo a rua se tornou deserta, e o Carnaval cessou. Ao centro, como uma ilha, homens de preto; tristes figuras em forma grotesca.

É sabido que nossa cidade é ainda incipiente na arte da cidadania, dos esportes ou das festas. É cidade que ainda carece de identidade; crescida precocemente sob a égide do modernismo de um tempo que ainda não chegou. É também uma cidade ainda desconcertada, que tão logo nasceu, teve de ser enquadrada por atos institucionais e generais – cidade traumatizada.

Enquanto, nós, protagonistas não tomamos nossos lugares, enquanto se discutem papéis ou ações, há quem, de há muito, esteja se mexendo por entre frestas e sombras. Gente como essa, que empobreceu a história brasiliense com um episódio tão vergonhoso e facínora como o do Massacre da Pacheco Fernandes. Gente que mente, mente, mente... E também mata.

Bom Carnaval, Senhor Governador. Que as lembranças daquele dia estejam sendo, agora, reavivadas em cada canto dessa sua cela. Aproveite o tempo e componha uma marchinha, ou mesmo um frevo. O Galinho foi ferido, mas continua aceso.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Desacato ao Carnaval


O dia estava lindo para um pulo de Carnaval. Era dia de se encontrar com o Galinho – o Galinho de Brasília.

Já antes, muito antes desse encontro – ainda em casa -, sinto os prenúncios do que vem por aí. É como se preparar para ir a um estádio lotado, sendo que, desta feita, o Zico sou eu.

É possível enxergar a massa brincando, fora de si, com sorrisos à larga – e você é parte dela. O Carnaval não é balada, não é rave. É tradição; raiz.


Enquanto a gente “se guarda pra quando o Carnaval chegar”, tem-se a exata dimensão do júbilo que esse momento significa e representa para a identidade e a satisfação de ser brasileiro.

Como parecerá, aos recifenses, o nosso Galinho frente ao pernambucano? Um espirro de saudade - caricatura malfeita do estrondoso galináceo -, ou uma redenção – um pedacinho de lá pertinho da gente?

Claro, não há nada que se comparar este àquele, pois o nosso já vem com diminutivo no nome para não dar ares de insubordinação. Mesmo no Carnaval, há que se ter respeito à ordem e à hierarquia.

Súdito momesco que sou, adoro as ordens dos metais, a autoridade dos sopros e a imponência das batidas do frevo. Não choro de saudades porque nunca estive por lá, mas de emoção, alegria ou excitação, pois quem cai nessa dança... É pra se acabar!

Quanto à emoção de se estar entre mil ou um milhão, à primeira vista, pode parecer haver uma distância abissal, mas certamente há um mesmo DNA em ambos os casos. Quando se está ali, em meio ao cheiro da gente, numa vibração quase uníssona, sabe-se que a humanidade tem jeito; sente-se a energia divina da vida correndo latente no sangue; é puro poder!

A histeria da banda, inerente ao próprio ritmo do frevo, conduz todos a uma mesma freqüência emocional. Os sucessos se repetem, infinitamente, tornando-se marcas indeléveis em nossas memórias afetiva e musical. Não importa que você não saiba quem foi Capiba e que ‘Vassourinha(s)’ não seja somente um utensílio doméstico, pois quando a música te invade o a alma, elevando tua condição e tirando seus pés do chão, a razão perde o sentido. É frevo é o trio é o povo; é o povo é o frevo é o trio...

Ao meio da tarde, após estacionar meu carro numa quadra mais distante, caminho por entre a grama brasiliense, satisfeito, sentindo potentes doses de bem estar que se pronunciam mais e mais pelas ondas quentes do brilho solar, até alcançar as primárias - porém imprescindíveis - cores de nosso Galinho. Rua tomada, colorida, animada! Sol forte na testa, suor, fantasia e espuma. E tava o sapo cururu, tava a rã e tava a jia...

Encontro conhecidos meus, de agora e do tempo de meus pais. Mas tenho de estar sozinho para me juntar à multidão. Carnaval é movimento, improviso; desaviso. Vai-se para onde quer; ainda que trôpego, o destino é o Paraíso.

A única segunda-feira que é comemorada todo ano é a Segunda de Carnaval. E aquela estava realmente diferente; estava tudo dando certo demais. O bloco ia e vinha pelas superquadras candangas, causando grande alvoroço por onde passava. As crianças, nos ombros ou no chão, inventavam seus próprios passos de frevo. E toda a gente se ia, às gargalhadas e banhos de cerveja e espuma. Quem não pulava, sorria, acenava; dava passagem. E a tarde foi assim caindo, azul púrpura, purpurinada.

O Galinho então fez sua última volta pelo seu pequeno circuito, dando fim à sua performance. No entanto, não houve dispersão; o que era Galinho virou massa densa, e se transformou numa emocionante comunhão de foliões. O trenzinho com a banda já partira, e mesmo assim se escutava, lá e cá, por toda a extensão do comércio, toda sorte de celebração.

Porém, como uma sombra que não percebemos, subitamente, um verdadeiro comboio da polícia furou a multidão, causando total desconforto e estranhamento. Muitos se constrangeram. Eram sete ou oito carros com suas sirenes cor de sangue cortando nossa alegria. Como abre-alas, um grande furgão preto, blindado, cheio de militares, onde se lia "TROPA DE CHOQUE".
Foi um gesto assintoso, entendido por todos como uma demonstração de um mau-gosto poucas vezes antes visto. Somente uma distorção muito grande na concepção da relação entre a polícia e o cidadão produziria uma aparição tão grotesca e truculenta. Somente uma mente muito tacanha e bronca permitiria um confrontamento assim; certamente era coisa de gente triste, infeliz, mal amada ou amargurada. Infelizmente, o mundo também tem esse tipo de gente...
Era como se nossa festa fosse invadida por um grupo de fortões anabolizados, contra os quais a indignação poderia não ser a melhor reação; e não era. A massa se sentiu acuada. Parecia que algo de muito grave havia ocorrido, tamanho o aparato policial.

Estabelecido o corredor polonês invertido (posto que os oprimidos estavam fora dele), as ‘viaturas’ foram passando lentamente, desafiando nossa alegria, tentando conter o incontível.
Nossa reação era a indignação, percebida por sonoras vaias e ofensas contra o Governador Arruda e contra os próprios PM's. Éramos maioria e, talvez por isso, um ou outro tenha se aproveitado para mostrar que ali, naquele dia, 'quem mandava éramos nós'.

Primeiro foi uma latinha de cerveja que voou até o capô de um dos carros, e muita espuma lançada contra os vidros. Depois, um retardado entendeu que o grande lance era mesmo esculachar com os milicos, e não hesitou em saltar de bunda na tampa do porta-malas, causando certa perplexidade - em nós e nos polícias dentro do carro. Era tudo o que precisavam. O comboio parou...

sábado, 6 de fevereiro de 2010

A Ilha Apodrecida


Brasília tornou-se infelicidade.

Fui morar no mato porque queria ter vida à minha volta. Ver o passarinho fazer um ninho, pisar no chão de terra, ver a nuvem, o vento, o tempo; a Mãe Natureza, sabe?... Sentia a falta do seu carinho.

Um amigo que me vendia pães de maçã saborosamente integrais foi quem me deu a dica: “Lá, onde eu moro, é tudo assim, desse jeito aí que você falou”.

A primeira tentativa foi logo feita. Apareci bonito, ao natural, com barba e cabelo. E fui logo recebido pelo homem simples do local. Gostei da modéstia e da casinha recém reformada. Confirmei interesse e levei parentes para gostarem também.

Trato feito, ficou tudo acertado, firmado na oralidade. Dali a alguns dias, a mudança seria levada a cabo. Mas logo veio o desencanto: a casinha que tanto queria fora querida por outros também. Trato desfeito. Quebra de confiança. Poxa, logo com um homem da roça – de enxada na mão e tudo mais... Mas, quem desconfiaria?

Logo entendi que minha conversa tinha culpa. Quem manda falar para homem pobre que o dinheiro não vale nada? Que o valor maior está nos olhos, ou escondido, dentro do coração?

Pois foi o que fiz, cheio de ladainha e poesia, quis permear a prosa de valores verdadeiros, mas não financeiros. E as portas daquela casinha se fecharam.

Mas o tempo, o vento levou, e fez-se a próxima temporada; e mais uma empreitada.

Soube de nova casinha, a uma outra colada.

Bati palmas. Saiu de lá um sujeito franzino e dentuço, com cara de espiritualidade e roupas brancas, me lembrando a eternidade. Perguntou o meu nome e disse que ia meditar antes de me aceitar. Ao fim do dia, me ligou: "Gostei de você. Acho que vamos nos entender muito bem!”. Tornamo-nos vizinhos e grandes amigos.

Foi um tempo bom aquele... No início, quando tudo é novidade, a vida ganha contornos coloridos; até água fria e falta de energia são motivos de tranquilidade. De lá, o céu era mais bonito que o da cidade, e sempre tinha estrelas.

Enquanto isso, eu fazia tudo o que queria. O que eu mais gostava era de pular da cama e, ainda nu, ir direto ao jardim para fazer o xixi da manhã. Bocejar para as plantas é melhor do que para azulejo. De um lado, via mangas, goiabas e amoras recém-nascidas. Abaixo, formigas levando folhagem ao formigueiro. E ao longe, bem longe, os parcos sons de uma cidade da qual eu já não gostava tanto.

Aranha tinha. Barata não. Prefiro cinco aranhas a uma única barata.

E enquanto eu ia aprendendo a passar o tempo sem muito fazer, conversava com quem aparecesse. Gente diferente e sem preconceito. Gente pobre, gente simples e, como eu, cheia de defeitos. Eu, agora, tinha vizinhos à vontade; daqueles que dão “bom dia” por gosto, e não por ofício ou vício. Claro, faziam picuinha como a gente da cidade, embora fossem bem mais, gente de verdade.

Eu agora tinha janelas e portas abertas para a vida. Para as meninas que brincavam no gramado em frente, e que sempre invadiam minha casa, sorridentes. Para o vizinho que meditava. Para o amigo novo que chegava e logo se acomodava.

Foi realmente um tempo bom, um tempo novo. Que me estimula a olhar para frente, talvez olhar diferente... Já não posso mais afirmar o amor que um dia pensei sentir pela minha cidade.

Viver numa grande caixa, cheinha de gente, nunca me fez muita alegria. Invejava aqueles que, ainda que mais pobres, tinham uma turma, uma rua, uma comunidade a qual pertenciam. Eu nunca pertenci a Brasília; a uma superquadra – ainda que por ali houvesse toda a vida vivido. Mais de 30 anos em apartamentos de alto padrão não me davam alento, só solidão.

Acho que ela se tornou paradigma anticomunitário. Um reflexo espúrio do excremento mesquinho, pérfido e pútrido das autoridades que aqui cagam, cheias de cinismo e imunidade. Uma cidade que não se mexe e não se envergonha de nada. Que perde espaço para os muros e os condomínios feitos em dissonância; à perfeição dos anseios de cada individualidade.

Já não há o sonho candango, que, aliás, é palavra feia. Nunca foi adotada pelas elites que aqui chegaram com tudo já feito... Pelos próprios candangos!

Já não há tantas crianças pela grama. Já não há tantas crianças pelas ruas ou pelas quadras... Onde estão as crianças? Meteram-nas todas em grandes shoppings? Mas tantas assim? Sim, constroem-se mais shoppings e cinemas e casas de jogos e tudo mais o que for possível para tirá-las do convívio simples e real de uma vida comunitária. Dizem pertencer a várias comunidades que – pasmem! – não existem nem no papel, senão em telas – e somente nelas.

Ocupada, desordenada e desencantada. O livre caminhar perdeu rumo. O concreto virou vidro. A espontaneidade perdeu o sentido. A esperança virou desalento, medo, castigo.

E agora, Lúcio? E agora, Oscar? Porventura desconfiariam que o avião iria naufragar?

Pois naufragou a nossa Brasília, tornou-se puramente ilha, Brasólia, inglória.

Antes que derrubem meu mato, boto minha viola no saco e vou-me embora, farto.

...

...

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FIM


Ps:Se escutarem por aí que foi este Maltrapa quem mexeu seus pauzinhos (modéstia...) para encarcerar nosso Grande Panetoneiro, desconfiem! É pura perseguição política e inveja do membro alheio. Afinal, posso não gostar muito de frutas cítricas, mas adoro infusão de Arruda!